Sernancelhe – 1.º Festival das Sopas (A pedagogia de um certame)

Miga bem a tigela, dizia a voz materna, amorável no seu sotaque ralhado. Miga bem, Jaime, que só tens caldo! Aquilino Ribeiro, in Quando os Lobos Uivam. O Município de Sernancelhe de há muito conquistou fama com a sua anual Festa da Castanha, esse paradigmático fruto de inigualável sabor que é a castanha martaínha dos […]

  • 12:56 | Quarta-feira, 19 de Fevereiro de 2014
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Miga bem a tigela, dizia a voz materna, amorável no seu sotaque ralhado. Miga bem, Jaime, que só tens caldo!

Aquilino Ribeiro, in Quando os Lobos Uivam.

O Município de Sernancelhe de há muito conquistou fama com a sua anual Festa da Castanha, esse paradigmático fruto de inigualável sabor que é a castanha martaínha dos soutos arejados pelos ventos do Norte que se desprendem das encostas, festa de colheitas projectada para além do equinócio quando os outros frutos da terra já se recolheram nos celeiros e nas adegas, quando o vinho novo se apronta para as primeiras libações. E vem agora, há muito dobrado o ano, a Senhora das Candeias fora anunciando, no dizer dos antigos, de poética forma, que o inverno se está a ir embora, esse festivo acto ora inventado, o 1.º Festival das Sopas, outra vez generosa celebração dos frutos da terra, do trabalho do homem ora redimido, com esse baptismo de suor, da culpa original que por herança nos tocou. Pão distribuído de outra maneira, a magia das mulheres, que eram elas antigamente as donas dos saberes, a escolha dos frutos verdes da horta, das sementes secas na eira, das ervas cheirosas, das aves, da caça, do gado doméstico, e o jeito milenar, de magia lhe chamei, da entrega de uma tigela cheia sobre a mão – a sopa, o caldo do antigo linguajar, designação directamente colhida do termo latino que tanto significa o real calor do alimento como a quentura que se lhe associa dos afectos. Caldo, alimento quotidiano e primeiro em casa de lavrador, de natural presença na mesa posta sobre toalha a cavador, ceifeiro ou malhador, na cesta que se aviava para a ceia do pastor, na malga cheia que, de esmola, se dava a um mendigo.


Romperam-se velhas usanças no seio das comunidades rurais, rotos os laços com a terra, mil razões acontecendo para dar voz ao estigmatizante e falso dito de que “o caldo é para os pobres” que desertaram, quantos puderam, por caminhos de Cristo, na busca de sorte e trabalho, de terra que desse pão. Aculturou-se a mesa, transgrediram-se os rituais familiares, esqueceram-se no armário as tigelas enramadas e os pratos fundos com a marca de um cavalinho que enfeitava a mesa no festivo dia da matança do porco ou quando havia convidado.

O Festival das Sopas promovido pelo Município de Sernancelhe redime agora o transgressor feixe de culpas que ficaram sem ajuste e a saudável reinvenção de um costume antigo constitui-se como um singular acto pedagógico de louvar.

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