A TERRA DE FRIO TEMPERAMENTO

Corre um dito antigo por aquela Beira Transmontana que “o frio madruga em Penedono, almoça em Trancoso e ceia na Guarda” e os que fazem leitura ao inverso apenas quererão referir-se à viagem de regresso, na manhã do dia seguinte, quando um arisco ventinho se solta do agasalho das neves e faz viagem de retorno […]

  • 12:50 | Domingo, 20 de Novembro de 2016
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Corre um dito antigo por aquela Beira Transmontana que “o frio madruga em Penedono, almoça em Trancoso e ceia na Guarda” e os que fazem leitura ao inverso apenas quererão referir-se à viagem de regresso, na manhã do dia seguinte, quando um arisco ventinho se solta do agasalho das neves e faz viagem de retorno até essa madre de cafurna acolhedora, a serra do Monte Sirigo, como a chamavam os curas antigos, e que me habituei, de menino, a olhar, madrigueira desse vento do norte que entrava, sem licença, pelas ruas da minha terra, uma das quais ganhou, do vento, o nome de Rua do Cieiro.

“O temperamento dela [a serra do Sirigo] é frigidíssimo”, escreve o Reitor das Antas, António Camelo, respondendo ao inquérito que o bispo lhe envia, em 1758, em nome do Ministro de D. José, afirmação corroborada pelo abade de S. Pedro, uma das paróquias da vila, o padre João Saraiva, por baixo assinada pelo abade da paróquia irmã de S. Salvador, ambos afirmando que “a qualidade do seu temperamento é o ser frigidíssima pela altura em que se acha”. E a mesma expressão utiliza o reitor de Penela da Beira, o padre António Correia de Carvalho, que ele e seus fregueses lá arranjariam maneira de se aquecer ao lume do raizame da torga, das franças e dos tocos de pinheiro, do bioco do xaile e do capote, das mantas de burel pesando sobre o leito.

Não se queixaram do frio os curas da Granja, da Póvoa, do Ourozinho, tudo termos de Penedono, que ali havia já bafos do Douro, ali crescia já a oliveira e a vinha e davam mimos as hortas.


Mesmo assim, nem sempre estavam os homens contentes com a sorte que lhes coubera. Basta ler o que escreveu o abade do Souto, o padre António da Costa Paiva, na resposta a um dos quesitos do inquérito atrás referido. Diz ele, lamentando, parece, que na sua paróquia não haja serra que se veja: – “Não há serra que se faça ponderável nem digna de memória, nem outras notabilidades dignas de se expressarem, que as terras humildes e piquenas em tudo o são”.

Coitado do bom do abade. Nem ele sabia a sorte que tinha com esses invernos mais amenos, pastor de quatrocentas e vinte almas, ao tempo, trezentos mil reis de côngrua por cuidar de Abadia do Padroado Real e o não nomeado pé-de-altar.

Centenares de invernos já correram sobre esse tempo de que os bons daqueles abades nos dão fé. A serra do Monte Sirigo de que eles falavam lá permanece com seu pedregal lambido do vento, os pilros que ninguém corta para lume de forno, seus fojos de coelhos, seus velhos caminhos de romeiros hoje abandonados. O vento arisco do inverno, esse lá continua a madrugar nas madrigueiras da serra seguindo viagem com as auras da manhã.

 

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