O REBUSCO DAS CASTANHAS NAS TERRAS DE SERNANCELHE

Rogo-te que me deixes ir respigar nos campos de quem me quiser acolher favoravelmente.    Livro de Rute, 2, 2-3   Vem de um tempo longínquo a humílima tarefa das rebuscadoras, que a bíblica lei de Moisés estabelecera já suas regras a respeito desse quadro de vida de base eminentemente agrícola quando a terra era pertença […]

  • 14:25 | Sábado, 17 de Dezembro de 2016
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Rogo-te que me deixes ir respigar nos campos de quem me quiser acolher favoravelmente.   

Livro de Rute, 2, 2-3

 


Vem de um tempo longínquo a humílima tarefa das rebuscadoras, que a bíblica lei de Moisés estabelecera já suas regras a respeito desse quadro de vida de base eminentemente agrícola quando a terra era pertença dos poucos que dela colhiam os frutos, restando aos outros, aqueles que sempre alugaram os braços de trabalho, o “respigo” dos frutos que ficavam perdidos na terra, espigas de trigo ou cevada, cachos escondidos entre as parras, talvez bolotas no largo chão das carvalhas, castanhas e azeitonas no tarde.

O mais impressionante testemunho deste circunstancial modo de vida colhe-se no antigo “Livro de Rute”, a dedicada moabita, jovial ainda na sua recente viuvez, mulher de dedicação extrema que não abandona na velhice a sua sogra Noemi e que Javé recompensa com o “resgate”, o casamento com Booz, parente rico de seu marido, em cujos campos fora respigar as perdidas espigas de cevada deixadas pelos segadores.

Jean François Millet (1814-1875) retrata, mais tarde, num dos seus mais belos e comoventes quadros – As Respigadoras (1857) – a laboriosa faina de três mulheres, dobradas sobre a terra sem que a sua dignidade se sinta ferida, que recolhem as espigas do trigo que restou na campina após a colheita.

Conhecia-as assim, mulheres da minha terra, quando eu era menino, conheci-as nos campos de meu pai, lembro-me ainda dos nomes de algumas delas, dignas como as de Millet, respigadoras das espigas de centeio, de trigo também, que os segadores deixavam ao atar dos molhos que depois se carregavam para a rolheira.

Voltavam pouco depois por ocasião do arranque das batatas e era-lhes permitido remexer a terra de onde os burricos ou o carro de bois haviam levado já a colheita do ano.

Havia também o respigo dos cachos ao findar da vindima. E depois as castanhas, pelos Santos, quando nas eiras ardiam as fogueiras dos magustos conviviais.

Uma coisa requeriam os lavradores das mulheres que por lá andavam, nos soutos, britando os últimos ouriços, a cesta breza demorando tempo sem fim a encher, era que não danificassem o centeio semeado, mal acabado de nascer, nesse múltiplo aproveitamento de um chão agro como era o das encostas ventosas onde os castanheiros medravam.

Nesta Beira serrana, Terras do Demo ou Beira Transmontana, dizia-se “rebusco” esta humílima tarefa do respigo e o “Dicionário Houaiss”, registando-o como “termo beirão”, define-o como “Busca pelas espigas, cachos, castanhas, azeitonas, etc. deixados na planta após a apanha, ceifa, vindima, etc.”

Nem sempre se cumpria esse requerer dos lavradores, das mulheres do rebusco, que sempre eram as mulheres quem do pão cuidava.

E isso sabemos mercê do registo que ficou numa das Actas da reunião da Câmara de Sernancelhe, a 9 de Novembro de 1940, quando certos proprietários do Granjal e de outras freguesias fizeram chegar à Câmara queixas de que os rebuscadores de castanha danificavam, ao caso, a cultura do centeio, estendida aos soutos.

A Câmara, atenta, deliberou assim:

A propósito e tendo em atenção esta e outras queixas foi deliberado proibir em todo o concelho o rebusco de castanhas em soutos e propriedades particulares sem prévia autorização de seus donos. Com esta medida tem-se sobretudo em vista proteger a cultura do centeio e outros cereais, sujeita a grandes danos com a invasão em massa dos rebuscadores sem escrúpulos, devendo ser afixados os competentes editais e solicitar o auxílio da Guarda Nacional Republicana para cumprimento desta deliberação”.

Alguns cuidados houve, decerto, que as rebuscadoras essas continuaram por muito tempo entregues a essa penosa faina, digna, mas não alegre, não como a dos ceifeiros, dos vindimadores, de quem colhia o linho, que esses cantavam pelo dia fora.

As terras lavradas continuaram sempre na posse de alguns, até que os filhos das rebuscadoras, cansados da humilhação de suas mães, resolveram partir.

Caminhos de França e Aragança, no dizer de Aquilino. O Brasil, um pouco antes, não fora o bastante.

Mas não foi perfeito o caminho.

Já não há rebuscadores nas Terras de Sernancelhe, nas Terras do Demo, na Beira Transmontana. Já ninguém semeia centeio, nem trigo, nem cevada. E eu não sei se a razão é apenas por a terra ser avara.

 

Nota: Imagem… As Respigadoras (1857); Óleo s/ tela, de Jean François Millet.

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