O apóstolo maldito

Era inevitável. Empurrado pela minha prima Carminda, fui forçado a programar uma ida a Fátima. Aquela cabeça não pára, e, então, desde que o Padre Delfim nos trocou por Nelas, cresce nela um desejo esquisito de viajar.

  • 22:10 | Terça-feira, 03 de Junho de 2014
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Era inevitável. Empurrado pela minha prima Carminda, fui forçado a programar uma ida a Fátima. Aquela cabeça não pára, e, então, desde que o Padre Delfim nos trocou por Nelas, cresce nela um desejo esquisito de viajar. Nunca, antes, falhara uma excursão organizada pelo P.D., fosse onde fosse: Roma, Jerusalém, Lurdes, Fátima (uma 200 vezes, acho eu), etc.

Condescendi na esperança de que a visita à nova Igreja da Trindade (ainda não é basílica) me espantasse e me mostrasse um edifício, cuja arquitectura, é já um referencial do arquitecto grego Alexandros Tombasis, e, um local de visita obrigatória dos cursos de arquitectura das nossas universidades. Confesso que metade da minha anuência se deveu à minha curiosidade.

Saímos cedo, depósito cheio pago por ela, e, á velocidade de uma Ave-Maria por quilómetro, fomos andando até nos encaixarmos na bicha de automóveis que, a passo de caracol, avançava para a portagem, que ela também pagou, evidentemente, porque a promessa era dela e eu era apenas o motorista e não o otário de serviço.


Estacionar foi um problema resolvido de forma satisfatória porque, no meio daquele caos de carros e gente, a minha prima Carminda encontrou uma freira amiga, de uma congregação qualquer, que tem uma casa de retiros espirituais junto ao santuário. Na altura pensei que era mais um milagre do que uma coincidência, e, o carrito, lá ficou guardado no parque privado das amigas da minha prima.

Depois foi o rãmerrã do costume: compra e queima de velas

(-Uma é por ti, ó herege! – disse-me baixinho)

reza na Capela das Aparições, dádiva em dinheiro para as obras da nova basílica, cumprimento da promessa com uma volta de joelhos no chão em redor da Capela, etc.

O normal para quem vai a Fátima por Fé e convicção.

Mas eu queria era ver a obra que já é a coqueluche da arquitectura religiosa em Portugal. E gostei! A imponência da construção dissolve-se entre o terreno e o céu, mais parecendo um prolongamento do horizonte e das árvores circundantes. Apesar daquela mole imensa o edifício não é ofensivo e a simplicidade das suas linhas deixam-nos a pensar que outra forma não poderia ter senão aquela.

Por fora, na sua volumetria e na ligação ao espaço de inserção, convenceu-me, e, ouvi mesmo, numa apreciação de especialista e com ar de entendido um peregrino, construtor civil, certamente, repetir constantemente para a família que o rodeava:

Tem aqui mais cimento que a Ponte da Arrábida!

Vieram-me à memória as palavras que ouvi de outros peregrinos no dia da inauguração e profusamente transmitidas nas televisões:

Num gustei! A igreija da minha freguesia é mais bunita questa! Ou: – Sei lá! Nem sei! Parece mais uma casa de cinema!

Entrei na Porta do S. Tiago (se não me engano) pois cada porta tem o nome de um dos Apóstolo que acompanhou Cristo neste mundo. Por dentro, espantou-me!

Simples, rica de espiritualidade, imensa mas acolhedora, com uma luz interior que respeita o recolhimento, confortável, pouco iconoclasta, enfim, creio mesmo que a Mão do Mestre, guiou a mão deste outro mestre terreno, o arquitecto Tombasis. Este templo esmaga o visitante e remete-o à sua condição terrena. Se essa era a intenção de quem mandou construir a Igreja da Trindade, consegui-o.

A visita estava a ser agradável com a vantagem da minha prima Carminda pagar as despesas do passeio. Nela, sentia-lhe o cheiro da vitória. Apercebera-se que eu estava a sentir-me bem com a visita, e, isso enchia-a de gozo. O pensamento dela era mais ou menos do género de quem pensa que angariou mais um militante para a Igreja Católica e que companhia para a missa dominical, nunca mais lhe faltaria. E, se tudo estava a correr bem, este ar de gozo fininho, matava-me. Irritava-me pensar que o regresso a Penalva do Castelo seria feito comigo de trombas e com ela a cantarolar o Avé-Avé no banco ao lado.

Saímos pela Porta de S. Matias. Abençoada a hora. Este sim, para mim, é que era um milagre. Passou-me a lua imediatamente. Baixinho, bichanei-lhe ao ouvido.

– Carminda lê o que está no cimo da porta.

Dizia mais ou menos isto: Porta de S. Matias. E ao lado: ocupou o lugar de Judas, etc, etc…

Não resisti. Aquela seria a minha vingança sobre o nariz arrebitado daquela beata falsa (não me sai da cabeça o Mãozinhas do Corte Inglês).

E vai de azucrinar os ouvidos da coruja de sacristia:

– Pensei que na Igreja Católica não havia discriminação. Afinal enganei-me! S. Matias nunca foi Apóstolo!

E, com ela a bufar e a tentar interromper-me a todo o momento lá lhe fui envenenado o espírito e a alma.

E perorei assim:

Judas foi, de entre todos os Apóstolos, aquele que, na hora da verdade, mais se aproximou de um ser humano. O seu comportamento, ao vender Cristo por trinta moedas, mostrou o lado terreno e material do ser humano. Enforcou-se numa figueira com a dor e remorso da sua traição. Sentiu o seu erro e expiou, por vontade própria, num tipo de justiça aplicado pelos homens, o seu pecado. Jesus já tinha perdoado, por antecipação a mentira de Pedro, que, por três vezes, negou conhecê-lo com receio do sofrimento no castigo que o esperaria. A traição e morte de Judas deram caminho à vitória de Cristo pois permitiu-Lhe a Ressurreição e a Sua ida para junto do Pai. A traição e morte de Judas permitiram a Glória do Senhor. Porquê, então, esta discriminação sobre o homem, que com o seu pecado, mais permitiu a glorificação de Cristo?

A Carminda estremecia a cada argumento meu. Faltava-lhe o ar e chispava chamas pelos olhos, e, pior, é que sentia que fora apanhada numa armadilha para a qual não tinha de momento, uma resposta adequada. O seu ar pálido de santa de cadeirame deu lugar a uma vermelhidão diabólica no rosto.

Tive pena dela e tentei fazer humor para ver se acalmava:

– Se calhar tiraram-lhe o nome da porta por causa do apelido: Iscariote não é nome de santo. Judas Iscariotes é mesmo um nome feio.

Confesso que receei que lhe desse uma coisa má. Respirava fundo, retorcia os olhos e não me encarava, limpava as mãos constantemente a um lenço de renda bordado com florzinhas amarelas e depois ficava a olhar para chão, quietinha como se estivesse morta.

As pessoas iam passando e uma atreveu-se mesmo a perguntar.

– A senhora sente-se mal? Olhe que estão ali os Escuteiros que a levam à enfermaria. Coitadinha! É do calor!

O caso foi grave e temi por um desmaio ali à Porta de S. Matias. Encostei-a à parede, dei-lhe um pouco de água, calei-me e lá foi estabilizando o ritmo cardíaco e a cor do rosto até se parecer com uma beata humilhada por um fariseu, mas não vencida. Dominou a respiração, e, repentinamente, olha-me de frente e assobiou as palavras carregadinhas de veneno:

– Judas! Judas és tu! Querias uma porta com o nome de Judas? Olha, por mim, punha o nome nesta porta aqui ao lado! Serve-te?

Olhei. A porta ao lado tinha os símbolos universais de um homem e de uma mulher e depois umas letras em tamanho médio: WC.

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