Mar de nuvens

Com um enredo atual, ao encontro das preocupações do leitor, com uma perceção dos espaços e das gentes digna de nota, com argumentos interessantes, a leitura de Mar de nuvens pode ser surpreendente. Fica a sugestão.

  • 11:40 | Terça-feira, 15 de Abril de 2014
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Francisco Martins da Silva. Mar de nuvens. Por ares pouco navegados da Lusofonia. RCP Edições, 2014

O convite do Francisco Silva para apresentar Mar de Nuvens em Mangualde, para além de ter proporcionado uma reunião de afetos, fez-me reencontrar com o mundo da lusofonia e com uma visão lúcida e fundamentada do panorama social e político do Portugal dos nossos dias.

A leitura do romance coloca alguns desafios, uma vez que não se trata de um livro de sentido único. Com efeito, acabei por conjugar dois pontos de vista: por um lado, o enredo que se desenvolve à volta de José Manuel Sobreiro, “ele mesmo”, confrontado com as suas memórias e a sua história pessoal; por outro lado, o mesmo José Manuel Sobreiro, agora na vertente de “político”, interventivo e empenhado. A fundação do Partido da Lusofonia (primeiramente referido no capítulo IV pela figura caricata e bem disposta de César Procópio, que procurando um sound bite à medida, afirma o slogan da campanha: na Lusofonia não somos periferia) obrigou a um périplo pelos territórios de língua portuguesa e essa deslocação ordena os capítulos XI a XIX. José Manuel Sobreiro e César Procópio (apenas Sobreiro nas últimas etapas) passam por Angola, Moçambique, Timor Leste, Macau, Goa, S. Tomé e Príncipe, Guiné, Cabo Verde, e Sobreiro ainda vai a Bruxelas antes de chegar a Lisboa, já no capítulo XX. Trata-se de uma deambulação proveitosa. As reuniões, tidas ao mais alto nível político, discutem e desenham um programa de cooperação lusófona tão sustentável que me parece capaz de convencer qualquer leitor. Para além disso, desenham-se contextos e paisagens, onde aprendemos e nos perdemos na beleza dos traços descritos.


Se bem que o subtítulo do romance, Por ares pouco navegados da Lusofonia, já elucidasse a metáfora presente no título, Mar de Nuvens (para além da ilustração, com o mapa de nuvens recortado sobre águas do mar, com os pontos vermelhos a assinalar os pontos da longa viagem do protagonista), este mar é o elemento de união a merecer nuvens mais consistentes, não apenas farrapos dispersos. O projeto do candidato político, secretário-geral do novo partido, o PDL, parte da necessidade de reforço dessa rarefação, tendo a língua e a história como pontos de partida para uma plataforma cultural, económica e política, cujas vantagens me deixaram verdadeiramente rendida. A construção deste mundo da lusofonia, com bases sustentadas, faz lembrar projetos antigos… lá está o eco camoniano da proposição épica, “por mares nunca dantes navegados”. Contudo, se mudaram os tempos e as viagens, não mudou o sonho. E foi necessário chegar ao fim do livro para encontrar as palavras certas de José Manuel Sobreiro, no contexto da entrevista televisiva entre o primeiro-ministro e o candidato do PDL: “Sem sonho não há projeto de vida e é da natureza do sonho ser sempre desproporcionado, senhor primeiro ministro. (…) Somos portugueses… Somos do mundo – Sobreiro elevando a voz – No centro da nossa bandeira, entre a esperança e o sacrifício, está a esfera armilar… Só estamos bem onde não estamos e queremos ao mesmo tempo o pró e o contra. Esta insatisfação fez-nos ir em frente no passado, como muitos erros, claro. Se tivermos presente a história, se soubermos aprender com os erros passados, poderemos voar muito alto, e todos nós, os lusófonos, sem hegemonias racistas, cumpriremos o sonho universalista” (225-226).

O romance apresenta duas situações inesperadas, com efeitos distintos. A primeira peripécia é o motor da narrativa: desconvocada a greve pelo secretário-geral do sindicato (Intersindical Normal), a população levanta-se, acabando por conduzir a uma situação de quase catástrofe, à marcação de eleições e a um cenário económico ainda mais difícil. É neste quadro de emergência nacional que surge o PDL, com as figuras do reitor da Universidade da Lusofonia e do candidato José Manuel Sobreiro, professor na dita universidade, entretanto afastado do sindicato. O cenário e as personagens não são de todos desconhecidos para o leitor e este efeito de reconhecimento, que acontece em muitos outros passos do romance, acaba por incentivar a leitura. A segunda situação acontece no fim, com as eleições legislativas. O sucesso do PDL nos media fazia antever a vitória eleitoral, mas não foi isso que aconteceu (outro cenário reconhecível), e a coligação obrigou a uma moderação nos projetos de uma Comunidade Lusófona que se antevia de contornos mais fortes (ainda assim, do euro passamos a luso…).

Mas o mar de nuvens é também o do “homem” José Manuel Sobreiro, o da sua história pessoal. “Devia ser possível viver várias vidas em simultâneo” (35). Esta expressão ocorre pelo menos duas vezes no romance… e com razão. A história do protagonista é uma história de intensidade emotiva, cujas etapas deixaram marcas fundas. O presente da narrativa encontra-o com a sua mulher Lua, Mbeji, e a sua Bárbara, Babu. Mbeji, que podia ser sua filha, como ele mesmo diz, é única na sua beleza, um capricho, mas acaba por ser a fusão de outras imagens e não impede, não impediu, Sobreiro de se relacionar com Péta (Perpétua), nem com qualquer outra mulher. A sequência narrativa, imposta pela progressão espacial e temporal associada ao ato da viagem, é também uma viagem pelos afetos. As mulheres povoam o espaço, são parte dele, e acolhem José Manuel Sobreiro. Em Angola reencontrou Fátima; em Moçambique foi Edna, ministra dos Negócios Estrangeiros; em Timor, uma exuberante bióloga australiana; em Macau, a brasileira Marcela; em Goa, a curadora da Fundação oriente, Jeera; em São Tomé, Nayr… Mas partir da Guiné o sentido desta procura mudou radicalmente. A memória tornou-se mais forte e pungente. Sobreiro procurou Florinda Só, e o passado parece bater-lhe de frente. Florinda já morrera, e também o filho dos dois de quem ele nunca tinha tido notícia. Ao cansaço da viagem soma-se esta descoberta, forte a memória, mais cheio o remorso, maior a desilusão. É este sentimento que o vai acompanhar em Cabo Verde, quando descansa nos braços de Esmeralda, e que o torna profundamente cínico quando reencontra Graça em Bruxelas ou acaba a noite com Christianne Lapost (outro cenário reconhecível). A chegada a casa coincide com o fim do casamento com Mbeji. E no final do romance está Péta, uma relação de amizade que se conjuga, sem ilusões, feita daquela verdade que a idade, o cansaço e a lucidez, muitas vezes conseguem resolver.

A figura de José Manuel Sobreiro é ambivalente: não é corrupto nem cínico e reconhece-se nele uma vontade, fundamentada em argumentos sólidos, de fazer bem as coisas; por outro lado, há nele uma mutabilidade que nos faz desconfiar. Nada nos é dito de Sobreiro, nem da cara nem do corpo, contrariamente ao desenho de tantas outras personagens. Mas também não é necessário para um perfil de homem cosmopolita e atento ao mundo que o envolve.

Com um enredo atual, ao encontro das preocupações do leitor, com uma perceção dos espaços e das gentes digna de nota, com argumentos interessantes, a leitura de Mar de nuvens pode ser surpreendente. Fica a sugestão.

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