Lembrando os meus piões antigos

Tenho um neto que se chama Rodrigo e tem seis anos. Não vivemos perto e isso lamenta o avô, mas isso não impede a corrente fortíssima do amor, que esse pode viajar sempre na distância e a faz perto.

  • 19:00 | Domingo, 22 de Janeiro de 2017
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Para o meu neto Rodrigo

 

Tenho um neto que se chama Rodrigo e tem seis anos. Não vivemos perto e isso lamenta o avô, mas isso não impede a corrente fortíssima do amor, que esse pode viajar sempre na distância e a faz perto.


Há dias, brincava ele com um pião, daqueles de mecânica à antiga, que se põem a girar com o gesto certo da mão e da baraça, intentando vê-lo a rodopiar na sua dança natural. Nesse dia o jeito dele ainda não estava certo e o pião caia solto, sem andar. Mas quis a sorte que o avô estivesse perto e quando o neto me estendeu o pião para ajudar lembrei os velhos gestos da aldeia, de quando era menino igual à sua idade, segurei o pião, abracei-o, “com mão firme”, disse ao neto, na baraça e lancei-o com aquele jeito do lançar, em tempo antigo, no terreiro da escola. E o pião ficou a andar. E deu para lembrar os jogos no Adro, as tardes inteiras, jogos de verdade com piões, às vezes, a quebrar, outras vezes mansos, colhidos na palma da mão onde ficavam, tempo sem fim, “a dormir”, sem parar de rodar.

Nesse dia o meu neto não ficou logo a saber. Mas teimou, treinou e aprendeu ao outro dia. Já estava longe mas recebi em casa o filmezinho. O pião rodopiava no pequeno terreiro de uma casa de avó. E tal qual o pião o meu neto saltava de alegria.

Dizia-me o pai, num breve comentário, que agora o pião era paixão e que era “mais saudável que as electrónicas do presente”. Por mais que a electrónica lhes regule, a um e outro, o dia-a-dia. Que nos tempos novos é assim.

De fora desse círculo apertado o meu neto tem, por uns dias, a mecânica simples de um pião. Mas eu quero que lhe reste, sobra maior, para ele fruir, como ao pião, a clara luz do sol a rebentar nas madrugadas, a luz do luar da Lua-cheia, a areia límpida da praia onde mergulha, um canteiro de jardim com flores de primavera onde possa cortar uma para dar à namorada, a sombra de uma tília, um castanheiro, uma araucária, uma cesta de cerejas, vermelhas e doces, na banca de um Mercado. E a mão de um amigo que se estende. E uma palavra numa hora de verdade. E a saudade, quando vem.

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