Ferreirim. Sernancelhe. Um monumento singular

Porque escondida do grande público traz-se agora a lume a imagem do que chamo um singular monumento, um singular documento de um tempo, de uma cultura de que se ignora, por inteiro, o sentido.

  • 8:48 | Domingo, 08 de Dezembro de 2013
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Porque escondida do grande público traz-se agora a lume a imagem do que chamo um singular monumento, um singular documento de um tempo, de uma cultura de que se ignora, por inteiro, o sentido.

Encontra-se este aparentemente estranho monólito de granito de grão fino de uma aveludada cor temperada do sol encastrado no muro de antiga habitação ora reconvertida e onde tem sede a Agência da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Ferreirim (Sernancelhe).


Memórias que subsistem recordam-no colocado no exterior de habitação, desprendido de anterior pouso para onde fora concebido e utilizado como banco para assento da gente em mornas tardes de Verão. Lembra-se ainda a gente que nessa habitação terá tido oficina um antigo alfaiate.

A curiosa pedra que apresenta um bom estado de conservação tem de comprimento 182 cm, uma largura de 41 cm, não sendo agora possível determinar a espessura de que pode medir-se apenas o ressalto de 7 cm observável a partir do muro a que se encontra acoplada.

Apresenta a mesma uma iconografia que, por mais que legível, não se torna, todavia, susceptível de fácil interpretação. E assim lemos com facilidade a existência de duas tesouras, uma delas, de modelo arcaizante, funcionando mercê da pressão dos dedos sobre o dorso das lâminas presas de um anel anterior concebido como mola*, outra, de feição mais recente, constituída pelos dois habituais anéis para a introdução dos dedos que farão movimentar as lâminas sobre um eixo que o artífice deixou em suspensão, talvez por inabilidade. Oferece-se ainda, em fundo desenho, como os primeiros, uma estrela de cinco pontas e, sobre o ombro da mesma, uma imprecisa figuração, provavelmente intencional também.

O sulco longitudinal com a exacta medida de 110 cm, a justa medida de uma “vara” de medir que as tecedeiras mantiveram até recente data parece antes constituir-se como instrumento de adorno, definindo o vão de um espaço para onde tal pedra – torça – teria sido concebida. Subjacendo, de um e outro lado do sulco, deixando ao meio um curto vão, marcou o pedreiro dez semi-esferas, cinco de cada lado, sendo ainda perfeitamente perceptíveis as do lado direito de quem olha.

As duas superfícies planas nos extremos do bloco fazem crer que tal pedra foi concebida como torça, lintel ou padieira de um vão que poderia ser de uma porta mas que ao caso se destinou a uma janela. A prová-lo está o intencional espaço já referido e que medeia entre os dois núcleos das semi-esferas cujo interior, não observável à vista, foi cavado para introduzir com segurança um novo elemento, provavelmente o topo de um colunelo, que faria da referida janela uma elegante janela geminada.

E se assim fica conhecida a anterior funcionalidade mecânica da torça, outra coisa não se passa com o significado dos registos iconográficos. Alfaiate ou tosador, ou as duas coisas, barbeiro provavelmente, poderia ser o dono da habitação com tal janela. Fica de fora o significado esquisito desta estrela de cinco pontas, antes mágico que indicador de qualquer outra natural categoria.

Quanto à época da feitura parece-me poder atribuir-se ainda a finais do século XV ou início do século XVI por onde se estende o uso de uma tardia gramática de matriz românico.

* – Ignoro até que tempo terá permanecido, particularmente ligada ao ofício de tosquiador, o tipo de tesoura de mola como a que se oferece no primeiro registo. Pode ver-se o manuseio de uma tesoura como esta no western de 1969 onde Gleen Ford é cartaz e cujo título original é Heaven with a gun traduzido para o título português de O Céu à mão armada (1969).

 

LEGENDA. Sernancelhe. Ferreirim. Agência da Caixa de Crédito Agrícola. Antiga torça de janela (séc. XV-XVI) (Foto de José Alfredo)

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