A mulher de Castelfiorentino

Como se pode falar sobre o assunto sem ferir a verdade nem ofender a lisura? Primeiro, os olhares vogaram por distracção.

  • 22:51 | Quinta-feira, 27 de Fevereiro de 2020
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O nome chegou já a noite se fechara. O Mestre espreitou pela janela do comboio e corrigiu:

– De Florença, não. De Castelfiorentino.

E assim, uma estação que devia passar sem nota entre a cidade dos Médicis e Siena culminou um dos mais felizes episódios de uma viagem cheia de belezas artísticas. Arrastando as malas há quase um dia, o grupo encontrou no meio da carruagem os quatro lugares que lhe permitiam manter a unidade. Ao lado, estava a mulher que protagoniza este caso.


Como se pode falar sobre o assunto sem ferir a verdade nem ofender a lisura? Primeiro, os olhares vogaram por distracção. E foi daí que veio um curioso diferendo que, só por si, daria outra história. O que é a beleza? Eis ao que aqueles três homens quiseram responder, troçados pela única voz feminina. O problema, verdadeiramente insusceptível, cresceu em entusiasmo e adquiriu a forma de um dilema extraordinário, absoluto, irrevogável. Aquela mulher distante, de cabelo louro, curto, assimétrico, vestida de preto, manipulando o telemóvel com destreza, era ou não o epítome da beleza? Seria atraente, bem vestida, sofisticada? Ou simplesmente bela? Vejam a elevação da conversa. O Mestre tendia para a primeira impressão. Eu, com certa exuberância, para a segunda. O Jorge, menos favoravelmente colocado, entregou-se às doçuras da ponderação. A Heloísa escarnecia.

E assim a conversa foi correndo. Quando o comboio tocou Empoli e de novo se tornou possível observar com cuidado, ultrapassando talvez as regras da moderação, a beleza parecia cada vez mais evidente. Argumentei com as linhas do rosto, a perfeição da boca, até a graciosidade do pescoço. O Mestre apontava as unhas de preto, a roupa de marca e os acessórios. Aproximava-se Castelfiorentino e ela descruzou as pernas, chegou-se à frente e preparou-se para desfazer as últimas dúvidas.

Veio.me a memória de um pormenor que, sem a boa vontade do leitor, se tornaria bizarro. Miguel Ângelo esculpiu Moisés sentado e com tal força que nos intimida a ideia de o ver erguendo-se. A força de Moisés era, naquela mulher, a beleza. E ia levantar-se. O comboio abrandou. Ela deslizou até à estrema do banco, as pernas formando um longo contorno.

Tudo se afigurava previsível. E não era. Esperavam o melhor e tiveram ainda mais. A minha incredulidade e a do Jorge seriam cómicas se não fossem genuínas. Creio ter dito coisas vulgares que aqui não servem. Só ao Jorge coube a distinção de, com o olhar, lhe prestar vassalagem até ao fundo da carruagem. Lembrando-se do episódio de Ravena mas não sabendo bem onde estava, dei início à lenda:

– Esta é a Mulher de Florença.

E o Mestre, com o equilíbrio de quem se distraíra no momento grandioso, aproximou-se da janela e emendou:

– De Florença, não. De Castelfiorentino.

Poucos dias depois, regressaram a Florença e ao comboio do espanto. Não encontraram a Mulher, mas trouxeram a experiência de uma beleza pictórica equivalente. Encontrei-a no centro de um quadro intitulado Cristo Descendo ao Limbo, do subtil e intrigante Bronzino. É a que ilustra esta nota e autorizou o Mestre a concluir que é inútil desejar o Paraíso sendo o limbo como é. Quem diz limbo, diria Castelfiorentino.

Fotografia: Heloísa Paulo

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