A lenda da cabicanca (Aguiar da Beira)

O temor à cabicanca – sim, porque o povo não sabendo que aquela desengonçada ave era uma cegonha, nunca outra tinha feito ninho por aqueles lados, quando a via exclamava: “Olha ca bicanca!” e cabicanca ficou, – dominava de tal modo as gentes de Aguiar da Beira, que os campos cessaram de ser arados, as vendas cerraram as portas, os bailes deixaram de ser dançados no terreiro.

  • 21:55 | Quinta-feira, 10 de Dezembro de 2020
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Conta-se que há séculos, quando de terra em terra, com os burritos pela arreata, os almocreves transportavam vitualhas e novidades, os moradores da recôndita vila de Aguiar da Beira andavam atemorizados por causa de um estranho ser, – corpo grande e desajeitado de ave, com asas que tapavam o sol quando este adormecia e um pescoço comprido rematado por um bico que nunca mais acabava -, que fizera da torre da igreja matriz, que tinha S. Pedro como orago, a sua casa.

Tão assustados andavam que nunca mais se acercaram da igreja. O sineiro deixou até de tocar para a missa e o padre, a quem o medo também não largava, abandonou o local onde pontualmente pontificava.

O temor à cabicanca – sim, porque o povo não sabendo que aquela desengonçada ave era uma cegonha, nunca outra tinha feito ninho por aqueles lados, quando a via exclamava: “Olha ca bicanca!” e cabicanca ficou, – dominava de tal modo as gentes de Aguiar da Beira, que os campos cessaram de ser arados, as vendas cerraram as portas, os bailes deixaram de ser dançados no terreiro.


E quando aquela terra estava mergulhada no maior marasmo, no mais terrível torpor, um almocreve de Trancoso, de seu nome Martinho Afonso, nas suas deambulações por terras beiraltinas, acercou-se da vila amodorrada. Condoído pela paralisia daquelas gentes e sabendo que era por receio da cabicanca, encheu-se de coragem, e qual Malhadinhas de antanho, empunhou a escopeta, que trazia a tiracolo, e zás … fez pontaria à cegonha, que descansadamente dormia no seu ninho, acertando-lhe em cheio. Enquanto a ave caía desamparada no lajedo granítico, acorria o povoléu alertado pelo estrondo do disparo. Conta-se que houve atropelos, pancadaria, ossos partidos e, quem sabe, uma outra morte por contar. Todos queriam ver e tocar a cabicanca que, durante meses, os havia trazido transidos de medo.

E Martinho Afonso? Que lhe aconteceu? Levado em triunfo como um herói vencedor de hercúleas batalhas, passou oito dias em festa contínua, bebendo e escorropichando o vinho que deixava marca em copos muito usados. Ou ele não tivesse a alcunha de “escorropicha”.

Do Escorropicha pouco mais sabemos para além dos padres nossos que o padre por ele encomendava todos os domingo. Como almocreve que era, dali galgou a outras paragens com o burrito pela arreata e muitas estórias para contar, dentre elas a da cabicanca… e tanto contou que os habitantes de Aguiar da Beira passaram a ser conhecidos por “cabicancas”, designação que perdura, mas nomeada em segredo…

Da igreja matriz de S. Pedro, onde a cegonha nidificou, não resta qualquer vestígio. Narra a tradição que foi votada ao abandono e construída uma nova matriz, desta vez dedicada a Santo Eusébio. Mas se a vetusta igreja ficou retida num passado já longínquo, o Largo dos Monumentos, com o Pelourinho, a Fonte Ameada e a Torre do Relógio, remete-nos para um tempo em que o quotidiano da vila se centrava naquele espaço… quem sabe se Martinho Afonso escorropichou o seu copito encostado a uma das ameias da fonte!…

 

((Imagem DR)

 

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