A evolução pasmada

É frequente, a muitos que partem, esquecermos o mal que fizeram. Alguns, até na morte encontram a glorificação que a vida não lhes mereceria. Os que ficam são assaz tolerantes e bondosos com os que partem. Provavelmente para colherem igual merecimento. Talvez, cinicamente, seja apenas um mero alívio e um óbolo a Caronte, o panegírico tão mais inusitado quanto imerecido.

  • 11:20 | Sexta-feira, 14 de Maio de 2021
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“O mal que os homens fazem sobrevive-lhes; o bem,
geralmente, é sepultado com seus ossos.”

William Shakespeare

 


Há verdades que não se esgotam com o fluir do tempo. São intemporais e moldam-se ao homem, que mais parece regredir do que evoluir ao passar dos séculos.

Se era suposto acompanharmos o progresso e o desenvolvimento que lhe subjaz, até numa perspectiva metafórica ascensional, essa óptica optimista e construtiva é ultrapassada pelos factos.

Certos governantes, pelos seus actos, conduzem os governados às piores calamidades.

A guerra, movida por ódios seculares, mata milhares que não sabem já por que morrem.

Os comportamentos humanos, nas multidões eufóricas e disfóricas, juntam no mesmo agir final, a letalidade desenfreada das matilhas famélicas.

 

 

É frequente, a muitos que partem, esquecermos o mal que fizeram. Alguns, até na morte encontram a glorificação que a vida não lhes mereceria. Os que ficam são assaz tolerantes e bondosos com os que partem. Provavelmente para colherem igual merecimento. Talvez, cinicamente, seja apenas um mero alívio e um óbolo a Caronte, o panegírico tão mais inusitado quanto imerecido.

O homem da Idade Média, com um milénio de obscura religiosidade sobre si, olhava o mundo mirando em absorta prece o céu, esquecendo-se de praticar a bondade na terra.

O seu sucedâneo da Renascença, com despertada curiosidade, descobre que o mundo não é plano e que há muito mar e terra a desbravar. O seu olhar é deslumbrado. Desce o olhar do céu para a terra e ao espelho descobre-se e à sua aparente grandeza.

O homem do Barroco refugia-se no ornamento e no rebuscado de um viver cosmético. Vive-se na era do tromp l’oeil, ou da ilusão credível. Por curiosidade, surge o perfume (parfum ou par fumée), para ocultar os fétidos cheiros que fogem à linfa cristalina.

O homem da modernidade, romântico, recusa o exterior, do qual não gosta e olha para dentro de si, inquieto. Inventa o homem em vez de o estudar como os vindouros. É um idealista.

O homem da contemporaneidade, olha assustado em redor de si, descobre seus vícios e taras e a decadência que o rodeia. A sua realidade social tornou-se um fait divers feito de temíveis catástrofes aparentemente inexplicáveis.

Passamos em mil anos do teocentrismo ao antropocentrismo e ficamo-nos pelo egocentrismo.

Et in Arcadia ego”, na propositada ausência do verbo, faz do “eu”, ontem, hoje e amanhã, “le noyau de braise”. O “eu” a quem a Arcádia, paraíso de pastores felizes no seio da natureza, não elevou dos terrenos baixios, os “esconsos semideiros” da existência. E se mais tecnologia e ciência lhe concedeu para um viver melhor, mais ferramentas lhe concedeu, também para piorar a existência dos semelhantes.

 

 

Por isso, deslumbrado, insciente do efémero e iludido com a possível perenidade, excede-se quotidianamente na malevolidade. Por seu turno, os tempos já não deificam o divino, que dispensa o presumido acto. Vendem-no mediaticamente a troco de prebendas, sinecuras ou suficientes 30 dinheiros. Os deuses do instante, tão eternos quanto a chama de uma vela ao vento.

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