2 – Chama-se Maria

Chama-se Maria. Maria de Jesus, Maria de Lurdes, Maria Rosa. Ou outra Maria qualquer. Ou apenas Rosa. Maria do João, pode ser, como uma das adoráveis velhinhas que eu conheci na minha terra ou Rosa do Adro, como a trágica heroína de Manuel Maria Rodrigues, nomes de gente a que se acrescentava, nas aldeias antigas, definidor de identidade, o nome do marido, o nome do seu “homem”, como lá se dizia ou o termo de uma geografia de vizinhança que tanto podia ser o adro como a fonte. E assim permaneciam, vida fora, despidas do verdadeiro nome, vestindo de negro, já viúvas.

  • 13:12 | Sexta-feira, 10 de Janeiro de 2014
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Chama-se Maria. Maria de Jesus, Maria de Lurdes, Maria Rosa. Ou outra Maria qualquer. Ou apenas Rosa. Maria do João, pode ser, como uma das adoráveis velhinhas que eu conheci na minha terra ou Rosa do Adro, como a trágica heroína de Manuel Maria Rodrigues, nomes de gente a que se acrescentava, nas aldeias antigas, definidor de identidade, o nome do marido, o nome do seu “homem”, como lá se dizia ou o termo de uma geografia de vizinhança que tanto podia ser o adro como a fonte. E assim permaneciam, vida fora, despidas do verdadeiro nome, vestindo de negro, já viúvas.

Não sei como se chama esta mulher. Não sei onde habitava, ao tempo. Que o registo do fotógrafo não ficou completo. Pouco importa. Que pouco diferente seria o viver antigo nas aldeias da cintura larga de Viseu.

Sentada numa pedra, encostada ao muro de uma quintã vazia, aquece-se ao sol morno de um tranquilo Outono e só a importuna passagem do fotógrafo que regista o instante da branda surpresa a distrai do enlevo em que mergulhara. E ainda bem, que na surpresa se deslaçam as mãos da mulher ora abandonadas no regaço e podemos ler nas suas mãos, mãos de dedos compridos, de rugas cavadas, a ninhada de filhos criada, os alqueires de pão amassado, tantos pedaços dados por esmola, os gestos de uma bênção ao findar do dia, Ave Marias rezadas.


Dignidade suprema no jeito de estar desta mulher!…

Mas quem sabe das mágoas, da saudade, de uma lágrima apagada, das noites vazias de sono, das madrugadas incertas? Que tudo isso ela guarda no abrigo do peito, íntimo tesouro não desvelado!…

É ainda belo aquele rosto que uma réstia de sol desenha como se escultor fosse e mármore talhasse, uma leve indagação que lhe fica no sorriso contido, no olhar que ainda interroga, sageza e memória nas linhas riscadas do tempo.

Quando o fotógrafo se despedir, tirará as mãos do regaço para dizer-lhe adeus como se fosse amigo da sua idade que partisse, não ficará triste de tão habituada que está a ficar sozinha, voltarão a semicerrar-se-lhe os olhos para ler na distância as páginas do livro da sua vida que teima em abrir-se sem ela querer e lá fica, silenciosa e doce, até que o sol se esconda no recorte dos telhados.

Dará conta da aragem da tarde quando as mãos arrefecerem porque o sangue já não é veloz e quente como dantes. Levantar-se-á então e num passo manso ainda seguro caminhará em direcção à porta de onde uma voz a chama.

Horas de ceia.

E ela lembra-se do tempo em que chamava os filhos que brincavam na rua.

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