A ilusão da companhia

A ilusão da companhia alimenta um mercado de milhões, a indústria dos robôs sexuais. A RealDoll, produto estrela da Abyss Creations, é a boneca erótica de silicone hiper-realista mais famosas do mundo.

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  • 10:15 | Terça-feira, 24 de Junho de 2025
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“O nosso cérebro muda com a tecnologia porque está em constante adaptação.”

(Javier Defelipe, neuroanatomista)


 

Há evidência científica, o uso alargado de dispositivos móveis, em idades cada vez mais precoces, afeta diversas áreas do cérebro humano relacionadas com o desenvolvimento e as funções cognitivas.

O cérebro digital é uma realidade para os nativos digitais, também conhecidos como Geração Z (zoomers), nascidos entre 1997 e 2021 – a primeira geração digitalmente nativa, que cresceu com a Internet e a tecnologia e viveu toda a adolescência na era dos smartphones. O cérebro digital também se tornou uma anatomia necessária para a geração analógica, designada por migrante digital.

A tecnologia tem imensas potencialidades, facilita muito as nossas vidas, mas também apresenta perigos e efeitos nefastos. É hoje claro que o uso excessivo da tecnologia leva à diminuição da interação social. As novas gerações sentem cada vez mais dificuldades para comunicar cara a cara. É comum comunicar por mensagens com alguém que está ali mesmo ao lado. Uma das consequências mais graves é a solidão e o isolamento. Há cada vez mais pessoas, de todas as idades, que se sentem extremamente sós. A solidão é uma epidemia que mata e poderá estar na base dos fenómenos crescentes dos bebés “reborn” e dos “robôs sexuais”. São conhecidas as terapias com bonecas utilizadas em alguns casos de doença de alzheimer. Há quem as colecione, são autênticas obras de arte. Alguns bebés “reborn” são vendidos para as crianças brincarem. A questão torna-se angustiante quando estes bonecos, profundamente realistas, assemelhando-se a bebés recém-nascidos, são tratados como se estivessem, de facto, vivos. São construídas maternidades falsas para receber e tratar estes bonecos, há funcionários que simulam o nascimento do bebé, é gerado um boletim de vacinas, certidão de nascimento e passaporte, é cortado o cordão umbilical, dão-lhes de mamar. Quem se vicia nos “reborn” refere nas suas narrativas sentir ansiedade e solidão.

 

 

Como consequência, até pela incompreensão que esta adição causa nos outros, as pessoas isolam-se cada vez mais, fugindo às críticas e ao estigma associado. No Brasil, onde o fenómeno ganhou uma escala impensável, já se desenham políticas públicas que visam propor restrições do atendimento médico a estas bonecas; acompanhamento psicológico, a quem tenha desenvolvido vínculo afetivo, considerado problemático, e prever multas para quem usa os bonecos para furar as filas nos hospitais ou ser prioritário nos transportes públicos.

A ideia de substituição deve ser alvo de atenção porque pode quebrar a fronteira entre a realidade e a ficção, transportando as pessoas para um mundo fantasioso e, naturalmente, perigoso. Logicamente, o problema não reside no boneco, mas muito provavelmente em questões prévias que se agudizarão com a relação criada com o objeto.

Confundir um objeto com um ser humano não pode ser normalizado e implica analisar este fenómeno do ponto de vista da saúde mental. Estas pessoas precisam de apoio profissional. A ilusão da companhia alimenta um mercado de milhões, a indústria dos robôs sexuais. A RealDoll, produto estrela da Abyss Creations, é a boneca erótica de silicone hiper-realista mais famosas do mundo. Podem custar 6000 dólares, o modelo básico, e atingir dezenas de milhares de euros, o “Rolls Royce” das bonecas sexuais, com rostos amovíveis que permitem ao seu dono, ao comprar um só corpo, dispor de várias parceiras sexuais com diferentes aparências.

Somos seres sociais, não programados para a solidão, precisamos de interagir, alimentamo-nos da relação com o outro. Os bonecos bebés e as bonecas sexuais não suprem as relações humanas significativas tão importantes do ponto de vista afetivo. Se quisermos pensar na longevidade, na qualidade de vida e na saúde, cito de cor a minha amiga Lia Araújo, Doutorada em Gerontologia, que se deparou com vários estudos que comprovam que o fator determinante, na qualidade de vida, numa fase avançada, não são a saúde e a funcionalidade, contrariamente ao que se julga, mas as relações.

Ter um propósito, um projeto de vida, e boas relações familiares e de amizade são elementos essenciais para que não nos sintamos sós e isolados. Sabemos que as relações, sejam de amizade, familiares ou amorosas, dão “trabalho”, têm que ser alimentadas e estimuladas. Será mais fácil “adotar” um “reborn” ou “comprar” um “Robô sexual”, mas, convenhamos, não será a solução desejável se queremos sentir-nos humanos.

Não percamos tempo, agora que acabou de ler este artigo, ligue a um(a) amigo(a) e combine um café, um jantar, como pretexto para uma boa conversa.

 

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