Grislel, nome de barco

Foi este diário que levei comigo para Roma e que usei dois meses seguidos.

  • 12:51 | Sexta-feira, 21 de Fevereiro de 2014
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Há quase vinte anos que me tomei de amores por João Baptista de Castro. É um caso sério… porque a sua obra não foi publicada nos nossos tempos, passo muito tempo na biblioteca com a Recreação proveitosa e outros títulos nas mãos. É um homem inteligente, culto e com um humor a toda a prova. Foi com ele que fui a Roma há uns anos e foi com ele que corri as ruas estreitas à procura de livrarias, recantos, relevos, palácios e obras de arte.

Mas a primeira viagem de João Baptista de Castro à Urbs é bem mais antiga do que as minhas. No manuscrito onde relata a sua jornada romana reencontrei o homem por quem me apaixonei, ainda mais novo, ainda mais ingénuo, ainda mais puro, dificilmente filtrando as experiências pessoais vividas num ano de viagem, escrevendo com o coração e a alegria nas mãos. Munido de atestado e passaporte, autorização dos pais e dos superiores, um baú com roupa e livros para tão longa viagem, Baptista de Castro embarcou em 1735 numa nau inglesa chamada Grislel, governada pelo capitão John Roland, com destino a Génova. Curioso, inquieto, com vontade de conhecer mundo e viver aventuras, levava na cabeça as palavras de Manuel de Vilhegas, que “todos hazemos siempre desvarios: el mucho recatado en los recatos y el mucho desviado en los desvios”.

Dispensou os amigos que o queriam acompanhar a bordo e embarcou mais cedo na companhia de Frei Alexandre e José Lourenço, que iam para Roma estudar. Apressado, inexperiente, João Baptista não comera absolutamente nada e quando entrou na câmara do capitão, que o acolhera, encontrou em cima da mesa dois cestos de ginjas garrafais. Consigo imaginar tão bem a satisfação com que comeu delas e a surpresa com que enjoou logo a seguir por causa do frio e dos balanços da nau. Foi tanta a aflição que correu para a amurada, branco como a cal, deitando fora tudo o que comera. Maior foi o susto que teve quando via que era vermelho tudo quanto lançava às águas, e imaginou que lhe teria rebentado alguma veia com a força e a violência do incómodo. Só depois, quando sentiu algum alívio, conseguiu lembrar-se que eram as ginjas que tinha comido… Fraco, com as pernas a tremer, deixou-se escorregar pela amurada e ali ficou com um nevoeiro fininho a semear contas nos cabelos encaracolados. Pelas onze horas já o sol brilhava e ele acordava do sonho que tivera, uma visão de naus e velas, mouros e piratas, atravessando o azul fundo do Mediterrâneo. Fiquei mais descansada quando o ouvi rir, olhos brilhantes, coração de ouro, recuperada a agilidade, prometendo aos companheiros que aquele seria o primeiro episódio do seu diário.


Passado pouco tempo, a Grislel levantou âncora. João Baptista lembrou-se das despedidas do Padre Vieira, das suas tiradas retóricas, e naquela hora de alguma forma se arrependeu de, por sua vontade, querer sentir tantas saudades da pátria e da família. Mas não teve grande tempo para saudades… tudo era novo e sobre tudo e todos deitou o seu olhar curioso. Chegou a Génova no primeiro de agosto, seguiu por terra, visitou Pisa e Florença e foi enganado pelo caleceiro que tinha contratado e que o conduziu a Liorne e não a Roma. Lá chegou ao seu destino, aborrecido com tanta malvadez, mas de coração aberto a uma cidade que lhe preencheu cada dia que permaneceu nela.

Foi este diário que levei comigo para Roma e que usei dois meses seguidos. Foi este olhar que me guiou e não falhou nem uma vez. Também escrevi um diário, sentada nas ruas, nas escadas das igrejas, nas fontes e nos muros… perdi-o, fatalmente. E assim ninguém se vai tomar de amores por mim, está visto.

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