O quadro de valores da democracia

Chegamos até aqui depois de uma campanha eleitoral sem sentido, em que o futuro de Portugal ficou, mais uma vez, para segundo plano. O importante era denegrir os adversários políticos e colocar em causa o seu caráter e a sua credibilidade – como ficou bem evidente nas redes sociais – para forçar mecanismos de voto […]

  • 8:21 | Sábado, 17 de Outubro de 2015
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Chegamos até aqui depois de uma campanha eleitoral sem sentido, em que o futuro de Portugal ficou, mais uma vez, para segundo plano. O importante era denegrir os adversários políticos e colocar em causa o seu caráter e a sua credibilidade – como ficou bem evidente nas redes sociais – para forçar mecanismos de voto útil. Com a ajuda de profissionais da arte da ilusão, organizaram-se campanhas festivaleiras, cheias de arruadas, visitas a mercados, bandeirinhas e jantares para mostrar muita gente, pressionando assim a decisão serena dos eleitores. A expressão do pensamento de quem se apresentava a eleição, nomeadamente os cabeça de lista nos vários círculos eleitorais, o programa que defendiam, a forma como antecipavam o futuro de Portugal nunca foi objeto de qualquer preocupação. Nesse processo de destruição da confiança e respeito mútuo entre adversários políticos, factores que são essenciais para a democracia representativa, os principais protagonistas foram incapazes de antecipar que estavam também a fechar todas portas do diálogo, a abater todas as pontes de entendimento, a isolar-se num quarto sem janelas, onde a luz não tem forma de entrar e onde tudo é desesperadamente fatal e de caminho único. Hoje, 12 dias depois das eleições, continuamos a assistir a mecanismos de destruição desse valor inestimável em democracia que é o diálogo entre diferentes visões do nosso futuro coletivo, e da inerente capacidade de compromisso que é fundamental para governar um país.
O importante era também desviar as atenções e reduzir a eleição à escolha de um primeiro-ministro, como se em Portugal não existisse uma democracia representativa. Por isso, todos tentam agora interpretar à sua maneira o significado do resultado das eleições. Mas na verdade, os portugueses elegeram deputados e não um primeiro-ministro. Consequentemente, uma solução governativa constrói-se no quadro parlamentar resultante das eleições, e pressupõe que uma maioria de deputados não se opõe à solução encontrada. Num parlamento sem maioria absoluta de um partido ou coligação isso significa negociação e compromisso. O que estamos a assistir, mais uma vez, é que muita gente não entende estes factos simples. Ou seja, é por ignorância e falta de cultura democrática que os políticos se dedicam afincadamente a destruir todas as possibilidades de diálogo franco e confiável. Por isso, acabada a campanha eleitoral e perante a necessidade de assumir cabalmente os mandatos atribuídos pelos eleitores, os políticos veem-se limitados na sua capacidade de ação e na capacidade de ponderação de caminhos mais consensuais. A solução preferencial indicada nas eleições aponta para um acordo PàF-PS. Se os seus líderes forem incapazes de fazer as respectivas cedências, por razões várias, devem tirar disso as respectivas consequências. Outras maiorias são também legítimas porque apoiadas por deputados eleitos. Mas não são a solução que os eleitores apontaram como preferencial. Serão alternativas de recurso, legítimas e democráticas, mas que a realizar-se demonstrarão uma muito significativa incapacidade de compromisso.
Enquanto os políticos não se movimentarem num quadro de valores que coloque o país e a democracia em primeiro lugar, e só depois os respetivos partidos e as circunstâncias pessoais de cada um, não serão capazes de perceber o valor do compromisso e de apreciar, sem perder convicções, a importância do debate entre diferentes como forma de melhorar propostas. Só nessa altura poderá ser visível – numa atitude que será agregadora – a sinceridade, a ética e a capacidade de correr riscos que cada um coloca no discurso e na ação política. Algo que só será possível, até como medida da nossa maturidade democrática, quando a vida pública for servida essencialmente por pessoas que vivem como pensam sem pensar como viverão, que têm outra vida para além da política, que percebem com clareza o caráter temporário do serviço público e, consequentemente, o vivem com total desprendimento. Um ex-primeiro-ministro (Carlos da Mota Pinto) dizia isso muito bem numa frase que repetia muitas vezes: “tenho sempre as chaves do meu carro privado no bolso”.

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Publicado em Opinião