Grosso nevoeiro – Seia-Sabugueiro-Torre, 13 de Julho de 2019

As grandes questões da humanidade resolvem-se em dilemas tremendos: ser ou não ser, o ovo ou a galinha, chuva ou nevoeiro. O Enólogo, dono de uma sabedoria antiga, gosta de perguntar aos incautos, que andam pelo mundo descuidadamente, o que preferem: muita chuva ou um grosso nevoeiro. Esta podia ser a dúvida dos ciclistas na […]

  • 13:35 | Domingo, 21 de Julho de 2019
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As grandes questões da humanidade resolvem-se em dilemas tremendos: ser ou não ser, o ovo ou a galinha, chuva ou nevoeiro.

O Enólogo, dono de uma sabedoria antiga, gosta de perguntar aos incautos, que andam pelo mundo descuidadamente, o que preferem: muita chuva ou um grosso nevoeiro. Esta podia ser a dúvida dos ciclistas na véspera de irem à serra da Estrela. Os prenúncios de chuva aconselhavam a prudência de ficar em casa. E tanto era assim que, se lhe pusessem o problema, eles optariam, relutantes, pelo grosso nevoeiro. E assim como o desejaram, assim o tiveram.

A decisão de manter a viagem de bicicleta só foi tomada na véspera, ao fim da tarde, e contou com a anuência do Peninha, do Vendedor, do Informático Motard e deste vosso criado. Seguimos os procedimentos de sábado passado: às sete em Avelãs de Caminho, bicicletas para dentro da carrinha, às nove e meia ou dez em Seia e, três horas e quinze minutos depois, fotografia na Torre. Parece simples, não é? E no entanto, mesmo sabendo que a subida é árdua, a dificuldade ressalta mais quando estamos nela e ainda nem chegámos à Lagoa Comprida. Ou quando já passámos a Lagoa Comprida e os declives, abalados pelo vento, parecem crescer na proporção inversa das forças.


Supúnhamos, fiados nas previsões meteorológicas, que deveríamos regressar a Seia até às quatro horas para evitar a chuva. Descer a serra com a estrada molhada seria uma insciência indigna de homens maduros. E bem se via, pela negritude do céu e a frieza dos ares, a extensão dessa possibilidade. Enganámo-nos. Bastou chegar à Aldeia da Serra para tirar calças e casaquinhas, e passar o Sabugueiro para conhecer a força do grosso nevoeiro. Até à Lagoa Comprida, vogámos numa nuvem espessa que, em certos momentos, só me permitia ver a três metros, e aos colegas a dez. Depois, conhecemos o sol tépido que pairava sobre as nuvens. Foi nesta parte final que o Vendedor e o Peninha se distanciaram ao ponto de o Informático Motard e eu só os reencontrarmos, estendidos, na placa central da rotunda deserta da Torre.

A descida foi ainda mais difícil por causa do nevoeiro e muito mais fácil por ser, como diria o senhor de La Palice, a descer. O Vendedor procurou ajudar-me, indo na frente a marcar o caminho. Não me esqueci de envergar o impermeável com elementos reflectores. E assim fomos, num passo de caracol, comigo a lamentar em silêncio que não fizéssemos uma fotografia, que ficaria tão heróica como as dos pioneiros do monte Everest. Almoçámos no Sabugueiro, na esplanada do restaurante sobranceiro à estrada, a que nos temos acolhido, com gosto, nas últimas vezes. O proprietário já vê em nós clientes habituais e presenteou-nos com uma esferográfica, que tenho ao meu lado e diz Grelhados da Serra – Restaurante.

Retomar o andamento depois do almoço é sempre custoso, porque se faz quando o que mais apetece é dormir. Todos passamos pela sonolência do repouso, todos protestamos pela subida e todos acabamos por a fazer com disciplina militar. De qualquer modo, dois ou três quilómetros de leve inclinação significaram pouco e conduziram a uma extensa descida que, liderada pelo Vendedor, nos pôs em Seia às quatro da tarde, como tínhamos previsto e desejado. E não choveu.

Fui ao dicionário ver a palavra bueiro. É sempre um buraco por onde se escoam as águas, seja nas estradas, nos terrenos, em muros, nos antigos navios de madeira, nas fornalhas e, acrescento eu, nos carros de bois. Para suster as cargas, por vezes altas, que subiam vários metros, os carros de bois dispunham de quatro buracos nos cantos, onde se metiam paus grossos e resistentes para suster as carradas de mato, palha, lenha ou erva, auxiliados por um adibal. Não calculam o prazer que tenho no uso desta palavra quase morta, que designa no Norte uma corda comprida e grossa empregada para prender cargas volumosas. O tio Josué, pai do Enólogo, tinha um ou dois adibais pendurados no portão de madeira da adega. Ora, sucede que na região da Bairrada se troca facilmente o v pelo b. Daqui decorre que o dilema do Enólogo talvez não passe de uma matreirice. Gostas mais de muita chuva ou de um grosso no bueiro? Os ilustrados em cultura popular devem responder, seguindo velhas tradições de género, que preferem muita chuva. A verdade manda-me dizer que, hoje, os ciclistas da serra preferiram o grosso nevoeiro.

Nuno Rosmaninho

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Publicado em Opinião