Governar, fazer de conta ou a vertigem do risco

Muitos, quase todos, dos que nos Governam ou se apresentam como alternativa têm da política e da nobre missão de Governar a ideia “maquiavélica” de que é a arte de conquistar e manter o poder, fomentando tentáculos que visam manipular a opinião pública. Temos vivido nessa lógica, e é talvez por isso que abundam comentadores […]

  • 17:38 | Quarta-feira, 20 de Agosto de 2014
  • Ler em 7 minutos

Muitos, quase todos, dos que nos Governam ou se apresentam como alternativa têm da política e da nobre missão de Governar a ideia “maquiavélica” de que é a arte de conquistar e manter o poder, fomentando tentáculos que visam manipular a opinião pública. Temos vivido nessa lógica, e é talvez por isso que abundam comentadores e especialistas políticos em tudo que é comunicação social. Depois do futebol, outra “nobre arte” que tudo parece substituir e colocar em 2º plano, o comentário político é de longe a atividade “profissional” que ocupa mais tempo de antena nas televisões, rádios e jornais. Discutem-se as táticas, as intenções, os sublinhados, aquilo que se deixou transparecer, mandam-se recados, testam-se mensagens e malfeitorias, mas, ser claro, apresentar olhos-nos-olhos uma estratégia de médio e longo prazo para o país, olhando de forma global para os problemas dos Portugueses, isso é que nem pensar. Perdeu-se a dimensão e a nobreza da política, resumindo-a a um jogo de espelhos, de esconde-esconde, onde o que interessa é ganhar uma pequena vantagem que se transforme em votação e atribua mandatos. Não importa se tudo isso foi obtido com a ajuda de pequenos e grandes enganos. É aparentemente uma questão de “momento certo” e de tática, como se tudo fosse um jogo e o único interesse fosse o próprio jogo, os jogadores e as suas peripécias, relatadas e escalpelizadas ao domingo, ou noutros dias da semana, por múltiplos comentadores.
O deputado e ex-Presidente da Assembleia da República Mota Amaral disse um dia de Francisco Sá Carneiro: “Tinha a vertigem do risco, vivia como pensava sem pensar como viveria”.
Lembrei-me dessa frase quando na sexta-feira passada ouvi Pedro Passos Coelho, no papel de líder do PSD, a dizer que (as quais, salvo qualquer decisão em contrário, decorrerão em Outubro de 2015, ou seja, dentro de 1 ano e 2 meses), ao mesmo tempo que garantia que a sustentabilidade da Segurança Social é . Fiquei muito admirado com esta intervenção, até porque ingenuamente pensava que os problemas do país e dos portugueses eram os problemas do Governo, pois é para isso que ele existe e foi eleito, bem como pensava que era sua obrigação solene a (declaração feita por Paulo Portas em nome do Governo) para os referidos problemas. Aliás o próprio Pedro Passos Coelho, no papel de Primeiro-Ministro, tinha dito isso mesmo durante o debate quinzenal de 17 de Janeiro de 2014, quando firmou que justificando assim a ação do Governo e a “confiança crescente no desempenho de Portugal”. E tinha e tem toda a razão o Primeiro-Ministro. Governar é um risco permanente em que se está por convicção e enquanto se é capaz, e se tem ânimo, para apresentar soluções para os problemas do país, sem táticas eleitorais ou sem os subterfúgios de quem quer manter o poder e (já) não distingue, aparentemente, a diferença entre o maquiavélico “ser” e o nobre “estar”.
Lembrei-me também do governo da Aliança Democrática de 1980, e da enorme tormenta que foram os meses de Janeiro a Outubro (10 meses) desse ano. Francisco Sá Carneiro, o Primeiro-Ministro da altura de um Governo de coligação entre o PSD, o CDS e o PPM, tomou posse a 3 de Janeiro de 1980 com um programa ambicioso no meio de um clima político altamente adverso.

(…) Assume-se, pois, o Poder não como um fim em si, mas como meio de realizar um projecto proposto e aceite. Assume-se hoje, aqui e no Parlamento, um poder que, por ser democrático, é relativo e tem de ser exercido com integral respeito pela Constituição, pelos demais órgãos de soberania, pelas forças sociais e políticas e, acima de tudo, pelos homens e mulheres de Portugal. Trata-se de um poder não gerado em gabinetes ou imposto nos bastidores. Em tais condições, ele não será um poder que não ouse exercer-se, usado para ocupação e partilha do Estado ou que se limite à mera administração de um sistema herdado em parte dos nossos adversários e em parte da acção não democrática de minorias que, a si próprias, se consideram revolucionárias.
Conscientes embora das limitações derivadas do tempo e resultantes da observância do regime constitucional vigente e respectivo período transitório, o actual Governo e a maioria parlamentar que o apoia, fiéis à escolha dos Portugueses, receberam o mandato de transformar a sociedade nacional segundo o seu projecto próprio, pela via de reformas cuja intensidade e ritmo serão determinados pela necessidade da resolução dos problemas concretos do País.
(Francisco Sá Carneiro, Discurso de tomada de posse do VI Governo Constitucional, 3 de Janeiro de 1980)

Disse ao que vinha, não desistiu e não adiou. Não procurou o conflito com os outros órgãos de soberania mas, ao invés, reconhecendo a necessidade de trabalhar em conjunto no escrupuloso respeito da constituição, afirmou com convicção e firmeza um programa político de reforma do país que procurou realizar até à sua morte. Não temeu as eleições de Outubro desse ano, e não abrandou a sua frenética ação reformista e autónoma, explicando a todos o racional das reformas que propunha. Não se esqueceu de dizer o que no seu ponto de vista tinha de mudar, nas leis, na organização do Estado e nas suas estruturas e até na Lei Fundamental que é a Constituição: tudo seguindo as regras da democracia, a que estava sujeito por juramento e da qual dependia a legitimidade do seu mandato. Ganhou de novo as eleições reforçando largamente a maioria parlamentar da coligação que liderava.


(…) Estes grandes propósitos exigem que o Governo da Aliança Democrática se situe e actue no plano nacional e não no plano partidário.
Apoiado pelos partidos e pessoas que integram a nova maioria parlamentar, o Governo e a sua política não lhe estão subordinados ainda que perante ela sejam responsáveis e por ela possam ser substituídos.
Foi essa orientação que me determinou a cessar o exercício das funções de Presidente do Partido Social Democrata. O cargo em que fui investido pertence ao PSD no quadro da AD, mas a responsabilidade pelo seu exercício e pela direcção política do Governo cabem-me inteiramente.
Autónomo, e guiando-se, como se guia, por critérios nacionais e não por objectivos meramente partidários, o Governo não descerá a expedientes eleitoralistas. Assim o impõe o sentido de serviço que o anima e a prática escrupulosa da verdade e do rigor, que será a sua. Por isso também, o Governo se não orientará por critérios ideológicos, mas partirá da situação dos seus concretos problemas.”
(Francisco Sá Carneiro, Discurso de tomada de posse do VI Governo Constitucional, 3 de Janeiro de 1980)

Governar é antecipar dificuldades e medir os desafios a enfrentar, mas também é sentir a impaciência, a descrença e o desespero acumulados e perceber que tudo isso se pode abater sobre a cabeça dos governantes se estes falharem na sua palavra, no seu exemplo e na sua ação.
Governar é também por isso não temer os riscos e, estando consciente deles, não recear falhar ou desmerecer a esperança.
Governar é ter a certeza, como dizem os antigos, que a força se forja na luta, a firmeza se constrói no combate pelos princípios e que a coragem se demonstra no enfrentar das crises.
Governar é assim ter a vertigem do risco e não ter nunca presente a circunstância pessoal de cada um.
Governar é fazer, explicar e fomentar a participação dos cidadãos, muito mais do que simplesmente discursar.
Governar é liderar uma geração fantástica, dando-lhe consequência e propósito, para que ela fique na memória de todos como aquela que teve a lucidez, a inteligência e a simplicidade de se focar nos reais problemas dos Portugueses, dando-lhes metodicamente resposta sem subordinação a preconceitos, combatendo a corrupção e o amiguismo, criando as condições para melhorar a vida de todos e preparar o futuro.
Governar é ter a consciência que a pessoa é a medida e o fim de toda a atividade humana, e que essa será sempre a medida do êxito ou do fracasso dos Governos e até dos Regimes.
Governar é mobilizar a nação que somos todos nós e definir com clareza o que se pretende para Portugal e como antecipamos o seu papel no mundo; é afirmar e debater quais são os princípios pelos quais se devem reger as reformas, na consciência de que o presente e o futuro precisam de razoabilidade e sustentabilidade; é afirmar quais os objetivos que se pretendem atingir e, tendo em conta esses objetivos, como se lida com os compromissos do passado, do presente e as justas expectativas do futuro, e como tudo isso se financia; não é de certeza criar ruído colocando os problemas de forma simplista e muito infeliz: .
Governar é ter a plena consciência das dificuldades do presente e do futuro e, com os olhos postos nessas dificuldades, ousar (continuar a) lutar pela liberdade concreta, pela igualdade e pela dignidade de vida de todos os Portugueses, desenvolvendo as soluções viáveis e justas que permitam construir o país que todos desejamos.
 
E esteve bem o Tribunal Constitucional (TC), perguntarão alguns?
Em minha opinião não esteve nada bem, e isso adiciona ao drama que vivemos porque são necessários referenciais de estabilidade e confiança. É verdade que por cobardia política, por desconhecimento e por hábito de empurrar com a barriga, os sucessivos Governos foram adiando as reformas que se impunham na Segurança Social. Na verdade, isso foi acontecendo também um pouco por todo o mundo. Adiou-se enquanto foi possível, repito, por cobardia e por inversão inaceitável de prioridades – o país nunca esteve no topo das prioridades, sendo substituído pelas circunstâncias pessoais e de pequenos grupos. Hoje já é uma emergência, dados os enormes desequilíbrios, agravados pela demografia, elevado desemprego, problemas de natalidade e crise económica e financeira generalizada. Percebo o argumento segundo o qual aquilo que se propunha não era uma reforma. Só que esse argumento não pode ser usado por um Tribunal Constitucional, porque é uma avaliação política que pura e simplesmente não lhe compete. Ao fazê-lo, ao cair no erro de entrar no mundo político, ao fazer juízos morais e não ficar na análise constitucional, o TC desprestigiou-se e perdeu mais um pouco da sua autoridade. E isso é muito mau para a democracia. O Governo tem a obrigação de respeitar escrupulosamente o que foi determinado pelo TC, mas aos olhos da sociedade o TC perdeu muita da sua razoabilidade, independência e autoridade.
Também esteve muito mal na questão dos vencimentos da função pública. No fundo, o que o TC veio dizer é que os cortes salariais são 100% constitucionais em 2014, são 80% constitucionais em 2015 e são 100% inconstitucionais em 2016. Ou seja, a Constituição Portuguesa aplicada ao mesmo assunto tem resultados completamente diversos em 3 anos sucessivos, considerando o TC para a declaração de constitucionalidade em 2014 e 2015 que são válidos argumentos relativos ao período de assistência económico-financeira em que vivemos, mas ignorando para a declaração de inconstitucionalidade em 2016 que as mesmas condições, ou até piores, se podem repetir no futuro. É simplesmente incompreensível.
Falta o respeito, a autoridade e a confiança que só se geram pela perceção clara de que as instituições do regime, sejam elas Governos, Tribunais, ou qualquer outras, guiam a sua ação colocando sempre o melhor da sua atenção e da sua dedicação na resolução dos problemas do país e dos portugueses, no reforço da democracia e da liberdade, e nunca nos interesses de grupo ou nas circunstâncias pessoais de cada um. É isso que é crítico para a confiança que, de facto, se perdeu.

Gosto do artigo
Publicado por
Publicado em Opinião