Carta aberta a António Costa

Algumas das escolhas que fizeste para muitos dos ministérios (já não falo para as secretarias) não cumpriram as obrigações que se impõem pela matriz tripla que indicaste em 2015. Foram de tal forma esquecidas que há muito calceteiro, sem desprimor, a ambicionar um lugar onde exista um carro preto com motorista branco. O exercício governativo não pode ser um manueldioguismo pateta e bacoco, do tipo Conde de Abranhos, como no início deste século chegamos a ter no Governo.

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  • 10:33 | Segunda-feira, 17 de Abril de 2023
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Caro António Costa

O país conhece-te, há décadas, e está surpreso com o teu desempenho governativo do último ano.

Está claro que há sempre um tempo de decadência, mas não dou por adquirido que esse tempo tenha chegado para ti.


És o político no ativo com mais sucessos eleitorais. Nem mesmo o Senhor Presidente da República se pode comparar, uma vez que só se colocou em verificação popular, antes do exercício da mais Alta Magistratura e numas eleições autárquicas em Lisboa, da qual não saiu vitorioso.

Tu, com 30 anos, também tentaste ser edil em Loures e perdeste, roubado nas urnas, mas todo o teu caminho foi de sucessos.

Foste o mais capaz dos responsáveis governativos pelas relações com o Parlamento e trabalhaste com personalidades únicas na construção da Exposição Universal de 1998.

Depois, como Ministro da Justiça, recrutaste dois excelentes Secretários de Estado, ambos com um suporte técnico muito relevante e com experiência de governação no território de Macau. Promoveste, em dois anos, grandes transformações legislativas e infraestruturais.

Como Presidente do Grupo Parlamentar do PS, reuniste na tua direção o que de melhor havia. Maria de Belém, Guilherme de Oliveira Martins, Elisa Ferreira, José Magalhães, entre outros, quase todos com enorme experiência profissional (e autoridade).

Nos meses em que estiveste no Parlamento Europeu, poucos mas relevantes pela tua função de Vice-Presidente, pudeste elevar a fasquia do teu desempenho e alargar as ferramentas, muitas, que já incorporavas.

Regressado, assumiste as funções de ministro transversal e governante da reforma do Estado e da segurança interna. As tuas escolhas de Secretários de Estado, com exceção de um deles, foram para personalidades com uma vida partidária e pessoal de muitas décadas e de qualidade reconhecida, e para um dos melhores quadros políticos que o PS teve, até hoje, pelo brilhantismo e pela inteligência.

A tua primeira eleição para a presidência da Câmara de Lisboa foi acompanhada de um conjunto de vereadores vindos de outras áreas, das administrações públicas e da sociedade. Esse foi, em minha opinião, o mais proficiente do teu tempo de autarca, onde pudeste programar e mandar executar com cuidados e com critério.

Nos dois mandatos seguintes decidiste recrutar pessoas mais novas, uns de boa cepa que são atualmente ministros, outros revelando-se uma deceção. As escolhas foram-se degradando. Foi esse tempo, de progressiva compensação pelo desempenho do pequeno, que num município sempre existe quanto ao incumbente, que se confirmou, em ti, o que em 2016, num texto do Público, eu apelidei como síndrome do alcaide. Libertaste-te de Lisboa, mas Lisboa continuou, por vezes ainda continua, como claramente se vê no pacote da descentralização, na tua cabeça.

Nos municípios o poder é caudilhista. Os serviços reportam aos vereadores e sempre ao presidente. Mesmo em Lisboa, o mandar fazer e o fazer confundem-se. Ali, em Lisboa, quase fizeste eclipsar duas caraterísticas que antes te eram muito benéficas: a triangulação e a opinião exterior. Ou seja, num concelho pequeno mesmo que pareça grande, com muito dinheiro e muitos dependentes, a gestão feita permitiu um trilho sem espinhos.

Mas havia também uma espécie de ausência de estrutura de comando e controle, beneficiada, como agora se tem visto, pela pouca atenção da comunicação social nacional às coisas autárquicas.

Essa mudança de perfil na tua ação política, foi por mim constatada nos poucos dias de uma tentativa fracassada de dirigir uma campanha eleitoral, no verão de 2015. Não há campanha que não tenha um sentido (ou a ausência dele) e não há candidato a chefe de Governo que não tenha um kamikaze.

Vieram as eleições e perdemos, coisa que te havia antecipado em carta pessoal de maio do mesmo ano de 2015. E não perdemos pelo passado do PS, como tu dizes habitualmente, usando uma conversa tida em Viseu com um comerciante. Perdemos porque não soubemos fazer render a tua aura e o sucesso que foram as primárias para a escolha de um candidato a Primeiro Ministro, nem olhar o país no seu todo e com as suas muitas realidades.

Depois, vieram os acordos históricos das esquerdas…

Confesso-te que, mesmo conhecendo a enorme disfuncionalidade do Governo da Geringonça, o aceitei por razões de salvação do país perante uma política ruim e tendo presente, também, a salvação do PS, perante uma qualquer viabilização de um novo Governo ultraliberal. Aí, voltaste mostrar a tua enorme capacidade de fazedor político, de salvador de crises, de inventor de soluções.

Mas a Geringonça criou um problema grave ao país e outro, também grave, ao PS.

O que criou ao país foi a desconsideração pela iniciativa, pelo mérito, pelo positivo, pela autovalorizarão. O excesso de Estado, de subsídio, de apoio, de intervenção, de discurso contra os que querem ter uma vida boa, criou danos que vão demorar a desaparecer. O crescimento económico que temos observado deve-se muito mais ao trabalho independente da AICEP e aos empresários, que não querem ter nada a ver com o Estado e com a burocracia, do que aos governantes. Temos de ser justos!

Um outro problema que a Geringonça criou ao PS foi a consideração de que este, o PS, é mais um de um “espaço progressista” (seja lá o que for esta designação), como que, depois de quase cinco décadas, tivéssemos regressado a Manuel Serra e aos idos 1975. O PS sempre foi um partido onde couberam os sociais democratas, os sociais liberais e os democratas radicais, em contraposição aos tradicionalistas, aos conservadores e aos ultraliberais do espaço das direitas que também incluíram, sempre, os neofascistas e os saudosistas salazaristas, todos de um lado, e aos estalinistas somados aos trotskistas hodiernos, do outro.

A governação da Geringonça foi marcada por uma nítida falta de ambição que sempre pensei tática. As exceções foram os rendimentos e o gasto público contido e algumas políticas, poucas, como a desburocratização, os transportes urbanos e a energia. Também se não cedeu na questão europeia e na política atlântica, mas as esquerdas da esquerda comem NATO’s ao pequeno almoço…

Em 2019, o PS ganhou as eleições. Mas o seu programa foi uma deceção. Jogámos, depois de 2015 e com a Agenda para a Década, em programas miniaturais, o que também se verificou em 2022, para que se possa dizer hoje, passados 13 meses, que já estão em marcha 70% das medidas. Uma governação não são medidas avulsas, são políticas nacionais integradas.

E qual a razão para isso? Regresso ao síndrome do alcaide. Nas câmaras os programas passaram a ser, a partir da década de 1990, de resposta a pequenos desejos e de micro-interesses. Em Lisboa também foi assim com exceção do equilíbrio financeiro, da reforma administrativa e territorial e da intervenção na frente ribeirinha. As grandes visões, a estratégia, deixaram de ter o sentido que tinham antes. Já o intuíamos, mas confirmámos quando tu disseste, há poucos dias, que não querias ficar na História. Um disparate, tu já estás na História, e só depende de ti como queres lá ficar…

António,

Um Governo, qualquer que seja, assenta em três pernas muito relevantes: 1ª Cumprir um programa claro para resolver os problemas estruturais (não muitos de uma vez) do país; 2ª Fazer com que haja um comando perante os abusos das administrações e as urgências de cada tempo; 3ª Dirigir as mesmas administrações fazendo convergir os interesses/agendas do Governo com os interesses/agendas da burocracia. Tu conheces como ninguém o artigo 182º da Constituição da República!

Foi essa trilogia que transmitiste, em 14 de março de 2005, aos teus secretários de Estado e respetivos chefes de gabinete, mas foste-te esquecendo dela, porque a vida política de alguma facilidade, que experienciaste no município de Lisboa, te terá levado a desgraduar muito do fundamental. Vê-se isso na forma como foste arrumando algumas das áreas do Governo: a Coesão, a Floresta, a Energia, o Mar, a Habitação, o Planeamento, os Assuntos Europeus, a Administração Pública, a Modernização Administrativa, sempre a saltitar e fora do lugar natural de cada uma.

Algumas das escolhas que fizeste para muitos dos ministérios (já não falo para as secretarias) não cumpriram as obrigações que se impõem pela matriz tripla que indicaste em 2015. Foram de tal forma esquecidas que há muito calceteiro, sem desprimor, a ambicionar um lugar onde exista um carro preto com motorista branco. O exercício governativo não pode ser um manueldioguismo pateta e bacoco, do tipo Conde de Abranhos, como no início deste século chegamos a ter no Governo.

Muitos dos eleitos por ti, sim, por ti porque quem escolhe ministros e secretários de Estado é o chefe do Governo, fazendo-os passar por uma obrigatória e severa barrela, são meditabundos, mas o exercício político é probidade (não puritanismo), coragem, resistência, fortaleza, até para enfrentar quem os preferiu, se for necessário.

E há ainda duas caraterísticas que não podem deixar de se observar: empatia e respaldo.

No teu atual executivo, e em mais de metade dos teus imediatos, a empatia ou não existe ou é de tal forma exercida que soa a falso e o respaldo quase nunca se cria, porque investidos membros do governo já só o Deus dos deuses é o outro que está do lado de lá do telefone.

E há incompetência, nítida, mas não é vista porque, por seres um ser humano não podes conseguir, não seria exigível que conseguisses, ver tudo, saber de tudo, conhecer de tudo. Só uma oposição muito triste e desqualificada, como a que temos no tempo de hoje, à direita e à esquerda, te pode responsabilizar pela cunha, sobre a mudança de um voo, que alguém tentou meter à CEO da TAP…

Caro,

Durante muito tempo decidi iludir-me justificando a governação errática e desconchavada com a Geringonça, com a pandemia e com a guerra. É verdade que as coisas correram relativamente bem na resposta à pandemia, os portugueses são bons a improvisar. E tu foste acertando com pequenos erros desnecessários.

Porém, a minha ilusão, toldada pelo viver socialista e por nunca negar os que prezo, já não pode mais sobreviver.

Está na hora de fazeres regressar o velho e atrevido político que o país conheceu. Está na hora de deixares o conforto e passares de ministro de tudo para chairman do Governo. Está na hora de cumprires o que os portugueses e os socialistas esperam de ti.

Não mantenhas o recalcitramento que foste construindo relativamente a muitos dos que fizeram o caminho contigo, que te querem bem e que, concordando ou discordando, sempre te respeitaram. Não mantenhas uma espécie de opção por governantes de infantário que desconhecem o país, principalmente o país onde se ganha dinheiro, se faz pela vida, e que a cada dia desrespeita mais o poder e o Estado. Não mantenhas a tua tendência por fazeres a política micro, porque ela não é mais possível e porque incutes medo em quem não sabe contigo lidar.

Marca objetivos, traça caminhos, faz líderes. O país discute e imputa-te já uma enorme derrota porque entendeste ser ministro da habitação neste último pacote. Ora, sabemos bem como a questão da habitação te está no sangue, desde 1991, mas agora és o chefe dos chefes e não o fazedor de políticas sectoriais. O Primeiro Ministro é aquele que tem a guarda da decisão final e não a outorga inicial de uma proposta.

Muita gente pede a dissolução do Parlamento. Sabemos bem porque a pedem. Nunca entenderam o que se passou em 2004, em que quem tinha ido a eleições não foi o mesmo que foi mandado para casa; porque muitos dos interesses estão, há muito, afastados dos negócios do Estado e sabemos bem que o Estado serve para privatizar quando dá sumo e para pagar quando há crise; porque existe hoje uma campanha de luta assanhada contra o socialismo, essa coisa marxista, como se o PS não tivesse deixado, há décadas, esse caminho e não tivesse assumido a liberdade, a “democracia burguesa” e a igualdade de oportunidades como marcas centrais.

O que interessa é saber quando terão razão. E nós esperamos que, enquanto tu fores Primeiro Ministro, nunca tenham razão.

Mas também esperamos que o mesmo aconteça no PS.

O PS de hoje quase não existe. Ou antes, existe quase só a partir do poder e para o poder. Ora, os partidos socialistas, mesmo no poder, sempre foram espaço de contrapoder. O Presidente do PS tem vindo a insistir numa nova fase de partido, numa nova audácia programática. Ser o partido que suporta o governo não é o mesmo que ser partido/Estado, um PRI à portuguesa.

Não há um só autarca socialista que, falando do coração, não esteja muito insatisfeito com o atual executivo. Muita dessa insatisfação resulta do facto de o PS não ser o interface. Não há um militante, de Vimioso a Barrancos, que consiga pensar a política, nacional e internacional, porque trocámos a discussão, o debate, pelo obreirismo, o abanacabecismo. Tu nunca suportaste um partido assim. Foi, aliás, essa a razão que te derrotou enquanto presidente da FAUL.

Não faças com que tudo seja dependente de um telefonema teu, de uma má disposição ou de um berro. Delegar não é fazer o que nós queremos, delegar é fazer o que importa ser feito.

Meu caro António,

Está na hora de virar a mesa. Está na hora de cumprir uma nova Aljubarrota em que o impossível se torna possível. Está na hora de voltar a ser o rumo.

Tu sabes, desde julho de 2015 e confirmado em outubro de 2019, que esta minha missiva não tem outro qualquer cabimento que não seja o teu interesse e principalmente o interesse do país. Sabes que o PS é a nossa única casa, minha tanto quanto tua. Sabes como queremos que este tempo, que um dia terminará, não seja de decomposição e de ineptidão.

A amizade que te tenho, quatro décadas de amizade, é tudo o que me move. É ela que impõe esta minha posição pública.

Ascenso Simões

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