A Legionossa

  Antes de fazer julgamentos apressados sobre responsabilidades, é preciso que se diga que em tempos de crise nada faz sentido. Se o barato sai caro – como não fazer prevenção de saúde oral e depois ter de pagar ao dentista a remediação de tudo quanto podia ter sido evitado – a verdade é que […]

  • 14:23 | Sexta-feira, 14 de Novembro de 2014
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Antes de fazer julgamentos apressados sobre responsabilidades, é preciso que se diga que em tempos de crise nada faz sentido.

Se o barato sai caro – como não fazer prevenção de saúde oral e depois ter de pagar ao dentista a remediação de tudo quanto podia ter sido evitado – a verdade é que muitas vezes não há escolha possível. Quem é que com os miseráveis salários portugueses pode gastar consultas no dentista quando tem contas para pagar necessárias à sobrevivência?


Que empresas asfixiadas financeiramente desviam dinheiro de salários para fazer inspecções, manutenção ou outros investimentos necessários?

A questão é portanto de em tempos de crise decidir, e decidir o melhor possível com os recursos escassos que existem. O que nos leva à questão da qualidade dos nossos decisores.

Seja nas empresas ou nas instituições, o processo que leva esta ou aquela pessoa ao lugar de decisão, não é, em tantos casos ( demais, casos demais…) a pessoa mais bem preparada.

Basta pensar no que sucede na política para perceber que determinadas características seleccionaram naturalmente os que melhor comunicam para os lugares de poder. (Depois lembro-me de Boliqueime e sei que todas as regras têm excepções…) Como se um tímido ou um mau comunicador não pudessem ser grandes estadistas, ou impecáveis gestores.

E temos assim, a escalada nos degraus que levam alguém à responsabilidade de decidir sobre tantas coisas que afectam as nossas vidas, entregue a características como o seguidismo, a lealdade acéfala, a lambe-botice e outras qualidade menos interessantes.

E se isto é assim na coisa pública e durante décadas ouvimos o chavão de que a boa gestão está nos privados, basta o BES Mau, o BPN e o BPP para podermos duvidar de semelhante afirmação…

Temos então que para liderar – no público e no privado – é preciso mais que o que temos visto. Se a formação académica e o carisma são importantes há muitas outras características que deviam fazer parte do perfil de quem gere empresas ou instituições, ou seja, quem tem o poder de mudar a vida de muitas outras pessoas.

Não perder de vista a realidade é uma das coisas que devia acompanhar quem sobe ao lugar da decisão. Quando os decisores se fecham num gabinete e passam a ouvir os ecos da realidade através de relatórios, assessores, chefias intermédias, é o princípio do fim. O fim da esperança.

A distância entre quem decide e a realidade é um factor anestesiante, tudo o que não vemos e não sentimos não dói. E nem é preciso subir aos lugares de poder para constatar o fosso que existe entre classes privilegiadas em Portugal e o resto da população. Gente pergaminhada e gente endinheirada profere absolutos disparates à velocidade da luz sobre realidades que desconhece, como o facto de os desempregados serem pessoas preguiçosas, incapazes de empreender ( e penso na quantidade de “empreendedores” que conheço cujo risco foi usarem heranças ou negócios herdados ou empréstimos de família, e estamos conversados…).

Da mesma forma ouço a esquerda fina reclamar do povão que insiste em ser ignorante, como se a ignorância pudesse auto medicar-se e alguém acordar num dia cheio de vontade de ler sobre a “Teoria para o Decrescimento Económico” em vez de espreitar a Casa dos Segredos e “ver as gordas” nos jornais líderes de audiências…

Por tudo isto, a paciência para tanta “verdade” vai faltando. O que me ocorre dizer é: antes de abrir a boca calcem os sapatos do outro, ponham-se no lugar deles. Ou como se diz em Portugal com o carácter negativo que isto aparentemente implica – “desçam ao nível dos outros”.

Porque “descer “, senhores é próprio dos grandes.

Desçamos pois à raiz funda das coisas, aos motivos primeiros e últimos. Se há pouca fiscalização nas unidades industriais, se há dinheiro para obras faraónicas e não para prevenção, se há fausto para meia dúzia e apenas sobrevivência para muitos, de quem é a responsabilidade? Não vivemos em ditadura, podemos decidir, podemos escolher. E o que fazemos no dia em que podemos escolher? Ficamos em casa, a ver o jogo?

A Legionella será incúria privada, negligência pública, azar dos azares, ou incompetência em cadeia. Não sabemos ainda. Mas como tudo o que afecta de forma grave e irreversível outras pessoas que estão sob alçada de quem elegemos, quem escolhemos para tomar decisões, há um momento em que deixa de ser Legionella.

É o momento em que passa a ser Legionossa.

 

(Cartoon de Zé Oliveira)

 

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