SENHORA DA LAPA – OS MEUS PÉS NO SEU TERREIRO

  Não há muitos dias voltei à Senhora da Lapa, essa minúscula “cidade” que fica nos confins da história e da lenda nessas “Terras do Nunca” que dão por nome de “Terras do Demo”, ainda se estendia o anil das urzes pelos montes, e à beira dos caminhos já florescia o tojo e a giesta […]

  • 22:44 | Segunda-feira, 11 de Maio de 2015
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Não há muitos dias voltei à Senhora da Lapa, essa minúscula “cidade” que fica nos confins da história e da lenda nessas “Terras do Nunca” que dão por nome de “Terras do Demo”, ainda se estendia o anil das urzes pelos montes, e à beira dos caminhos já florescia o tojo e a giesta onde descansava meu olhar de peregrino.

Às vezes dou uma volta ao redor do Santuário, às vezes espreito só de longe a boca da gruta iluminada, reparo, queira ou não queira, no altar, sobre a esquerda, onde estão os “judeus” da minha infância, a lança em riste, a misericórdia de um anjo que recolhe sangue sagrado, e agora penso que essa metafórica e sinistra figura continua a atormentar a vida dos justos, a nossa vida, falo por mim, que conheço alguns, só que nenhum anjo ainda veio colocar uma mão sobre a ferida.


Desta vez que fui à Lapa estendi, como sempre faço, o meu olhar sobre o Terreiro, esse espaço sacro-profano recolhido entre o mundo orbicular do casario. E desta vez o achei liberto desse pesadelo dos inconcebíveis monólitos com que um dia o carregaram, assim o quis, aberto e servil, o bom e sábio Padre Cordeiro nessa longeva idade em que Lapa se construía. De novo podem circular romeiros e de novo pode correr, segura, a procissão, e de novo ali pode folgar a gente, de novo ali pode ser mercado, como sempre foi, que ali comprei em tenda um realejo e um livro noutra tenda de folhetos de cordel, tinha nove anos, ainda não conhecia Glòrinhas, nem a Tereza Zabana, nem o João Bispo, já lá não ia nesse tempo o “João das Três” e nós comíamos a merenda sentados no outeiro, ao pé das Cruzes, toalha de linho aberta pelas mãos de minha mãe.

Foi nesse tempo que meu pai, que já me tinha mostrado o S. Francisco, a ruina do Convento à beira do qual morava Celidónia, foi nesse tempo de menino que ele me levou à Fonte onde me dizia que nascia o rio Vouga que eu lia como se fosse estrada para o mar.

A Senhora da Lapa continua, para mim, a ser berço de presença e de memória, “Terra dos Homens”, esse chão de descampado onde só por milagre se garante que a vida se possa atravessar com menos dor, onde só por milagre o pão se multiplica como um dia aconteceu à beira de Tiberíades. Basta ver essa teoria de quadrinhos, esse espelho aberto em quadradinhos nas paredes brancas do Museu.

 

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