Partir – ouvindo a noite bater contra os vidros da memória!

A viagem é um exercício de simplicidade. Acontece num tempo e num espaço e, mesmo que muitas sejam as opções possíveis, só um caminho é percorrido e visto. Assim, é também um exercício de esforço de boa convivência com a opção tomada, mas nunca deixa de ser fatalmente simples.

  • 20:55 | Terça-feira, 10 de Dezembro de 2013
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A viagem é um exercício de simplicidade. Acontece num tempo e num espaço e, mesmo que muitas sejam as opções possíveis, só um caminho é percorrido e visto. Assim, é também um exercício de esforço de boa convivência com a opção tomada, mas nunca deixa de ser fatalmente simples. O que a torna complexa é a inevitável fusão do percurso físico com o labirinto das memórias e dos pensamentos. Faz sentido o que dizia uma companheira de viagem por terras de Itália, que não se lembrava exatamente do que tinha visto, mas que era capaz de me dizer sem erro o que tinha pensado no toque de cada parede ocre da Toscânia.

E tudo isto porque, tendo acabado de reler mais um romance de Machado de Assis, peguei no livro de Nuno Júdice, As coisas mais simples, que continua há quatro anos na mesinha de cabeceira. Um dos primeiros poemas tem o título “Eco de viagem” e começa com dois versos que se tornaram espelho das últimas viagens que fiz: “Partir – ouvindo a noite bater contra os vidros da memória!”. Lembro que já li este poema numa circunstância em que falei de literatura de viagens em épocas mais remotas, quando se viajava a pé e de carroça por essa costa mediterrânica fora em direção a Roma, ou se balançava e tremia com as tempestades e os ataques de piratas mouros, numa qualquer nau genovesa partida de Lisboa. E se sofria e se morria. E tudo era motivo de espanto… e de escrita, quando ao viajante aprazia o registo.

Partir, ouvindo a noite bater contra os vidros da memória. Em Bucareste, de regresso a casa, apanhei um táxi às cinco horas da manhã. Com um sorriso já bem acordado, indiquei a direção e acrescentei deliberadamente “não estou com pressa”. Não troquei com o taxista nem mais uma palavra durante o percurso. Afundei-me no banco de trás e deixei que ele me levasse pela cidade deserta, desenhando um irrepetível percurso de luz e de solidão. Adivinhei que ele retomara o caminho certo quando nas longas avenidas cruzámos com o Arcul de Triumf e continuámos a rodar como se abandonássemos uma cidade fantasma. Creio que fechei os olhos por algum tempo enquanto o carro se aproximava do aeroporto. Na porta de embarque sentei-me ao lado dos outros, viajantes adormecidos, conversas em voz baixa, olhos gastos. Só amanheceu já em pleno voo, quando uma luz laranja e dourada iluminou um céu de nuvens. Também o dia encontrava memórias e escritas anteriores, mas não conseguiu apagar a impressão de íntima solidão.


Continuo a ler o texto de Nuno Júdice, lendo nas “linhas sucedendo às linhas” ecos de viagem com que me identifico e que se distanciam de mim ao mesmo tempo. Chego ao fim, também eu com um repertório de olhares e gestos, muitos deles já perdidos, alguns apenas entrevistos, tímidos e suspeitos, “que ainda hoje não sei ler, como se a sua linguagem se tivesse perdido num alfabeto de velhas emoções”. Nessa linguagem antiga só há lugar para “as coisas mais simples”.

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