O canto dos “Martírios” em Várzea de Calde

Várzea de Calde tem um singular Museu que recebeu a mais concreta designação de “Casa de Lavoura e Oficina do Linho”. Casa de Lavoura porque nela se reserva, inteira, a vera memória de uma antiga casa de lavrador, no espaço, na densa memória de quem a povoou, nos artefactos que foram o sustentáculo da ergologia […]

  • 12:28 | Quinta-feira, 10 de Abril de 2014
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Várzea de Calde tem um singular Museu que recebeu a mais concreta designação de “Casa de Lavoura e Oficina do Linho”. Casa de Lavoura porque nela se reserva, inteira, a vera memória de uma antiga casa de lavrador, no espaço, na densa memória de quem a povoou, nos artefactos que foram o sustentáculo da ergologia que foi suporte de uma vida; Oficina do Linho, porque se constitui como lição sobre essa familiar “indústria” que as mulheres da Várzea teimam em guardar, vivíssima, no chão dos linhares, no envolvente folclore de uma faina que parece interminável como as horas de fiar, como os fios das suas meadas. Ao museu compete a missão pedagógica de traduzir para o visitante esse conteúdo intrínseco que parte logo da sua arquitectura. Mas o museu tem ao lado o complexo da aldeia com sua peculiar orgânica. E tem saborosas tradições, um património imaterial muito rico de que saliento a inusitada festa do “Toco de S. Francisco” e o canto dos “Martírios” que se desenvolve, ininterrupto, entre a Quarta-feira de Cinzas e a noite de Quinta-feira Santa. Traz ressaibos de Idade Média, mas vem, de certeza, do século XVIII, este auto impregnado de fecunda catequese. Quando a noite já envolve a aldeia um generoso grupo de homens, que homens são, de raiz, os actores dessa noite, desdobrado em pequenos nucleos de dois a quatro, a partir de um original ponto de encontro, capela, cruzeiro, nicho de devoção, inicia, reverente, a piedosa toada dos “Martírios” sobre o padecente corpo de Cristo, comovidas quadras que depois dão lugar à celebração da Virgem, “A Virgem não veio”, sofredora também, à solidária oração cantada pelas Almas do Purgatório, “Ora seja pela Almas”, ao apelo a um renovo de vida com a voz “Converte-te” e, finalmente, depois de três dezenas de “estações”, longa hora passada, outra vez os homens se reúnem no Adro da Capela, no Largo do Cruzeiro, no Terreiro do Senhor da Boa Morte e cantam, em uníssono, “Ó cristão, olha que és pó”, reclamando dos fregueses um catártico exame de consciência que resgate comportamentos que não tenham seguido numa Via Crucis.

Ontem acompanhei os homens na estranha atmosfera de uma noite rescendendo a Primavera, quente como se de Junho fosse, luziam estrelas, havia uma lua clara, podiam ouvir-se os ralos que misturavam ao canto dos homens o seu canto e a deslado, nos quintais, a luz dos candeeiros públicos, misturada da luz do luar, deixava ver a sedosa brancura das flores das cerejeiras nos quintais da vizinhança.

A rua mantinha-se silenciosa e deserta. O mundo parecia em paz, nessa hora.


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