E a cidade contou-me histórias

Senti-me terrivelmente sozinha. Quero ir para casa, ver das plantas no pátio e das laranjeiras no jardim. E vim. Apanhei há dias os últimos botões de rosa.

  • 8:27 | Sexta-feira, 17 de Janeiro de 2014
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Tinha meia hora de espera até às quatro horas da manhã. Sentei-me num banco, pus os pés em cima da mala, enrolei as alças da mochila no braço, encostei a cabeça. Não cheguei a fechar os olhos.

As cidades são, pela noite fora, lugares inóspitos e deve haver qualquer coisa nos bancos de uma estação que atrai gente tão diferente. Estava frio e barulho. Pelo espaço aberto corria vento e eu aconcheguei-me mais. Talvez fosse pela manga curta de um grupo de rapazes que tentava acertar com uma garrafa no cesto do lixo enquanto gritava e tentava desfazer o banco em que se sentava. Alonguei os olhos para outro canto e parei ali. Quase que senti o ruído do zoom, focando mais longe, a tentar perceber se ela chorava, mas talvez não. Ele tinha umas calças vermelhas e cabelos longos encaracolados, magro, olhos vincados, vermelhos, fixados num ponto adiante, por cima do meu banco. Ela estava sentada de lado, debruçada no ombro dele, calças de ganga rasgadas. Abraçava-o e a mão direita desenhava-lhe os caracóis e da cara descia ao pescoço, tão devagar. Achei que os dedos dela podiam fixar-lhe cada detalhe da pele. De quando em quando ele puxava-a para o peito dele, como se fosse um hábito agora pouco convicto. Do outro lado estavam três amigas em final de festa. Sentadas lada a lado, quase estendidas nos bancos. Eu estaria roxa de frio com aquele vestido de lamé prateado, curto e decotado, mas gostei da flor escarlate nos cabelos pretos, a combinar com o batom retocado há uns minutos, e com as botas really pink, até ao joelho e com salto transparente, da terceira moça. Sorri com o glamour desfeito do início da madrugada a caminho dos subúrbios e havia qualquer coisa de petshopboysiano no meu sorriso curioso e interessado.

Entretanto chegou o meu autocarro ao mesmo tempo que um outro par se sentava mesmo junto à porta de vidro. Coloquei a mala no lugar e subi. Sentei-me no primeiro lugar, a sentir aquele calor bom, não posso adormecer, não posso. Observei pela última vez a estação e achei que as outras estações também deviam ser assim como imaginava que fossem. Sou bicho diurno e dá-me o sono quando se põe o sol e só acordo de madrugada. Pouco sei de estações ao meio da noite. Ela beijava-o, sentada no colo dele ao lado da porta de vidro. Um deles vem para o aeroporto, murmurei, que eu também beijaria assim a esta hora se tivesse de dizer um adeus para qualquer distância. Olhava-o nos olhos, tocava-o com um apego aflito a querer prender um corpo que já se afastava no tempo e ainda nem se tinha levantado do banco. Do meu lugar, quente e protegido, via-lhe o brilho marejado e adivinhava as palavras de amor. Poucos minutos mais, murmurei, apenas mais cinco minutos para o saberes teu. Levantaram-se e quando chegaram à porta do autocarro ficaram ali, repetindo cada beijo, e só depois de um minuto a ouvi-los trocar juras de devoção eterna percebi que os entendia sem esforço e que falavam em português. Amo-te, vem comigo. Não posso, mas tu, meu amor, volta. Sim. Também te amo. As palavras ressoaram de tal modo em mim, ali a um metro, que até hoje as ouço e repeti até agora as escrever. Ele entrou no autocarro apenas com uma mochila e ela ficou, quieta, interdita nas palavras e no sentir. Vês? Para quê tanto?


Senti-me terrivelmente sozinha. Quero ir para casa, ver das plantas no pátio e das laranjeiras no jardim. E vim. Apanhei há dias os últimos botões de rosa.

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