A MALGA DE CALDO

  A propósito do 2.º Festival de Sopas e Encontro de Ranchos em Sernancelhe. O município de Sernancelhe realiza nos próximos dias 20 a 22 de Fevereiro a 2.ª edição de um Festival que deixou eco no ano anterior e a que ora respondem, mais uma vez, as agremiações existentes no concelho, esses núcleos em […]

  • 12:24 | Quarta-feira, 18 de Fevereiro de 2015
  • Ler em 2 minutos

 

A propósito do 2.º Festival de Sopas e Encontro de Ranchos em Sernancelhe.

O município de Sernancelhe realiza nos próximos dias 20 a 22 de Fevereiro a 2.ª edição de um Festival que deixou eco no ano anterior e a que ora respondem, mais uma vez, as agremiações existentes no concelho, esses núcleos em que agora se condensa uma identidade colectiva assumida no tom maior de um fraternal gesto que corporiza antigas formas de estar da comunidade aldeã, simultaneamente autárcica e aberta.


A “sopa” que agora se oferece sobre o balcão de uma tenda armada traz à memória esse identitário cerimonial, ritual quase se lhe pode chamar, da preparação e do sequente acto de uma das mais costumeiras e populares práticas de manducação que atravessou gerações – o fazer e o comer o caldo, como antes se dizia.

Caldo, lhe chamávamos. De calidum, palavra que lhe fica de raiz, quente da lareira na hora de servir, quente que ficava quem chegava, às vezes de caminho de neve ou de geada, quente do amor, que isso era o que ele mais simbolizava.

Servia-se ao lavrador sobre o chão da arada, da cava ou da vessada, servia-se na cozinha, sentados no escano, ao calor da lareira, entre mãos a malga às vezes esboicelada, sobre mesa de festa, na sala mais honrada, com uma oração de permeio, era componente primeiro, o caldo, da ceia de pastor que uma criança levava, e a tigela, a malga de louceiro que chegava no verão ganhava quase o ser de um vaso sagrado em que o oficiante do mistério era sempre uma mulher que antes se cumpria ao estendê-la a um pobre de pedir, a bufarinheiro que requeria um canto de cabanal onde dormir.

De exemplaridade primeira, associação completa dos produtos da terra, a sopa de lavrador, às vezes assim chamada, água da fonte e sal e batata, feijão, abóbora e grão, couve troncha e mais tarde em flor, nabo e o pé de porco a temperar ou o naco de toucinho ou o osso da suã, chouriça também pode ser, e a manteiga caseira da feitura dos torresmos logo após a matança, este caldo, matricial, era a representação da terra inteira e era sinal de que o homem se fizera o seu senhor.

E o caldo de galinha que também havia, caldo de antes dar às mulheres em puerpério transe, e o caldinho de ovo com uns grãos de arroz ou de estrelinhas ou letras que davam para brincar, e as berças de couve e farinha, e a água de unto, pobrezinha, que também às vezes vi servir e ainda me dá pena, ainda me dói essa pobreza que eu vi num tempo que eu julgava ter passado e que parece outra vez, em pesadelo, estar a vir.

A malga de caldo que eu, graças a Deus, ainda seguro dia a dia em minha mão!…

Gosto do artigo
Publicado por
Publicado em Cultura