A fábula da malga de madeira

Quando éramos meninos, na aldeia, eu e meus primos tínhamos por tempo apetecido o tempo de Natal. mesmo quando éramos estudantes, de princípio, tempo em que acontecia a matança do porco que se tornava momento de franca sociabilidade, particularmente quando subíamos à Quinta do Covelo, meia légua das antigas, por caminhos de neve. Recordo, desse […]

  • 13:37 | Quarta-feira, 22 de Janeiro de 2014
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Quando éramos meninos, na aldeia, eu e meus primos tínhamos por tempo apetecido o tempo de Natal. mesmo quando éramos estudantes, de princípio, tempo em que acontecia a matança do porco que se tornava momento de franca sociabilidade, particularmente quando subíamos à Quinta do Covelo, meia légua das antigas, por caminhos de neve.

Recordo, desse tempo, o grande momento da refeição comunitária com os grandes sentados na mesa da sala e os miúdos na mesa da cozinha onde ardia um lume bravo de carvalho, gordas panelas de ferro de três pés cheirando bem e uma caldeira de cobre luzidia por dentro suspensa da chaminé por cambalheiras de ferro, cheia de água que ficava próximo da fervura.

A gente sentava-se a uma mesinha quadrada nuns banquinhos baixos, a mãe ou nossas tias serviam-nos a sopa em tigelas pequeninas e depois vinha a couve guisada, o arroz de chouriça, as batatas com torresmos, o fígado guisado e o sarrabulho, mas nesse dia ninguém nos obrigava a comer aquilo de que não gostávamos.


A mesa dos grandes era armada com uns pratos bonitos, louça de Sacavém enramada com cavalinhos soltos na corrida, os da minha mãe eram azuis, os da tia Dionília que eu nesse tempo achava mais bonitos tinham os mesmos motivos mas eram de um laranja-pálido. Não me lembro da cor dos pratos que usava a tia Adélia. Se calhar não tinham cavalinhos, não sei. De um lado e outro dos pratos, um dizia-se fundo e nele se servia a sopa, os outros ladeiros, para o resto dos manjares, colocavam-se os garfos e as facas de cabo de madeira escura que tinham sido areados na véspera e luziam como prata de altar nesse dia de servir. Não havia outros talheres que sobremesa não se usava, nesse tempo.

A refeição era demorada, nesse dia, e o fim dela marcava-se com um esperado tempo de oração. Era um costume antigo. Lembro-me do tempo em que o Senhor Henriques que era o encartado matador em casa de meu pai presidia ao recolhido ritual. As mulheres paravam de lavar a louça na cozinha e rezavam também. Dele, do senhor Henriques, guardo a memória de um homem temperado pela idade, o enredo da prece que recordava vivos e mortos numa ladainha comprida, o cigarro que acendia com golpes de pederneira e a ausência dele e desses tempos de menino me parece que tudo guardo ainda. E os nossos gestos de miúdos trincando maçãs a caminho do Adro, se era no povo, ou a caminho da soalheira laija plantada de palheiros, se era na Quinta do Covelo. Tarde fora até que uma aragem soprasse mansinho, arrefecendo, e nos fechasse a porta desse paraíso por nós inventado.

II.

Foram as memória de uma infância de aconchego que me trouxeram a memória desta fábula que designo como “Fábula da Malga de Madeira”, uma espécie de escudela que não era de uso em minha terra e só conheci mais tarde, talhadas em brandas madeiras de faia ou de salgueiro para uso em cozinha de pobre.

Conta-se, na fábula, a história de um jovem casal que vivia em agradável mansão de um estranho território como são sempre esses lugares de que as fábulas nos falam. Com eles habitava a mãe da ainda jovem mulher, avó de uma menina que andaria pelos quatro anos.

Era costume tomarem juntos as refeições até que um dia os pais da menina deram conta que as mãos da avó da menina começavam a tremer e que a vista lhe esmorecia. A colher de sopa entornava-se muitas vezes sobre a toalha, as migalhas de pão caiam-lhe amiúde sobre o regaço e os copos tombavam molhando o linho da toalha.

Não sofreu o incómodo o jovem casal e a mãe da menina passou a sentar sua mãe na mesa da cozinha onde lhe servia a refeição que a pobre da avó comia devagar, em silêncio, duas lágrimas às vezes caindo sobre a malga de madeira onde a filha lhe passara a servir a refeição depois que um prato se partira.

Vinha sentar-se, às vezes, ao pé da avó, a menina, e foi ali sentada que um dia a mãe a veio encontrar, tinha ela na mão um pequeno tronco de madeira que afeiçoava com pequena faca.

Que fazes? Podes magoar-te!… Quis saber a mãe da menina.

Estou a talhar uma malga para tu comeres quando fores velhinha como a avó. E continuou o seu desenho

Diz a fábula que a jovem mulher tomou nos braços sua velha mãe, que de novo a sentou na mesa da sala e que, daí em diante lhe passou a servir carinhosamente a refeição.

 

Nota: As fábulas existem. Têm mais de mil anos. Intangível é este património que nos cumpre guardar. Talvez que a sua lição ainda não tenha sido cumprida.

 

                                                             

 

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