Uma singular noite de entrudo

E na velha paróquia do Touro assim acontece ao longo do tríduo festivo. Mas na noite de Terça-feira Gorda, a comunidade redime-se e instaura-se o antiquíssimo clima da festa necessária ao exorcizar dos desregramentos que perturbaram o ano ora volvido para que uma paz patriarcal regresse ao seio da comunidade.

  • 20:29 | Sábado, 04 de Março de 2017
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Os dias de “Entrudo” nas Terras do Alto Paiva, serranas e tão antigas como as orcas semeadas pelos montes, naturalmente já não são o que eram. Que nas casas de cada um ou no remanso das mesas dos “Cafés” a televisão vai deixando perpassar os carnavalescos cortejos, no geral de exóticas atmosferas; nas ruas e praças já tão despidas de gente é raro ver ajuntamentos nos soalheiros costumados, e tornou-se quase estranho o aparecimento de algum teimoso mascarado operando as momices que, por natureza, lhe quadram. E na velha paróquia do Touro assim acontece ao longo do tríduo festivo. Mas na noite de Terça-feira Gorda, a comunidade redime-se e instaura-se o antiquíssimo clima da festa necessária ao exorcizar dos desregramentos que perturbaram o ano ora volvido para que uma paz patriarcal regresse ao seio da comunidade.

E o “Enterro do Rico Irmão”, a animada farsa que ali se representa desde há um tempo sem memória, arrasta a gente até ao adro da Capela de Santo António e ali, onde antigamente apenas a luz da lua e das estrelas governava e onde agora pontifica a luz das lâmpadas de muitos sóis, nesse palco de teatro aberto, armado como tribunal, em breve corre a leitura da vida de alguém que é toda a gente, drama de existência demorada, do incerto berço à véspera da cova, a cruz de ínvios caminhos pesando sobre ombros já feridos e em vez da mão compassiva entoa o clamor dos irmãos requerendo a morte do indesejado irmão que terá perdido o direito de nação.

E no corredor da morte, através de seu nomeado representante a quem confiou a panóplia de uma esquisita riqueza, assume a grandeza dessa generosa distribuição de bens que não apaziguam a multidão sedenta do seu sangue. E o juiz do povo autoriza por fim o cumprimento da sentença, o laço da forca e o posterior arrastamento do corpo até à pira que o consumirá. E é apenas face ao corpo exangue do Rico Irmão que o povo arrepanha os cabelos e chora a perda de um irmão, verdadeiramente chora sobre a sua desdita nesse dobrar da noite.


Mal sabendo que ao outro dia o drama da existência se continua.

Corre assim esta singular noite de Entrudo, no Touro, quando já os foliões de todos os Carnavais despiram as máscaras e se olharam ao espelho, descobrindo de novo o seu vero retrato.

 

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