Propósito e (des)interesse

Os tempos que correm são de vacuidade e ausência de propósito. Atuar por convicção, por princípio, tendo em mente (des)interesses coletivos é algo de mirífico e raro… e perigoso. Os políticos sucedem-se sem novidade, sem entrega e sem momentos de clarividência que sejam capazes de mobilizar. Ressalvo aqui, para ser claro, que sou militante do […]

  • 10:00 | Segunda-feira, 23 de Junho de 2014
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Os tempos que correm são de vacuidade e ausência de propósito. Atuar por convicção, por princípio, tendo em mente (des)interesses coletivos é algo de mirífico e raro… e perigoso. Os políticos sucedem-se sem novidade, sem entrega e sem momentos de clarividência que sejam capazes de mobilizar. Ressalvo aqui, para ser claro, que sou militante do PSD e que entendo a militância como um ato de liberdade, de clareza e de identificação com os princípios e a história de um partido que reforçam a necessidade de um posicionamento sério, firme e frontal dentro de um quadro ideológico em que acredito (a social-democracia).
O padrão é conhecido e repete-se incessantemente à frente dos nossos olhos. Quando aparecem são sempre muito palavrosos, cheios de ruturas com o passado, apontando com eficácia os defeitos dos outros, a ausência de resultados que nos conduziram ao descalabro, os vícios e a necessidade de mudar. Sucedem-se os eventos. E o discurso repete-se. Está bem, admitimos, é necessário passar a mensagem e isso implica repetição. Mas a cena continua a repetir-se, e a repetir-se e… a repetir-se. Os efeitos são nulos, os resultados inexistentes mas… o discurso continua a repetir-se.
Um dia, o discurso é desmentido. E o homem, ou mulher, das ruturas aceita uma pequena imposição de um aparelho de pressão qualquer. E o que diz, agora esvaziado de sentido e de propósito, continua a ser a repetição das muitas promessas peregrinas de mudança. Não percebe que nesse dia, morreu tudo o que disse e defendia. Convenceram-no que é preciso jogo de cintura, que é necessário contemporizar para atingir objetivos superiores. Coitado. Coitados de nós.
No meio, alguém passa a falar por ele, a anunciar o que ele “decidiu” e a estar seguro da cedência. E apresenta isso como um marco histórico da “mudança”. Assisto triste a este filme, e a pensar que a seguir, de novo, o mesmo argumento, com outros atores mas sempre com os mesmos realizadores, se vai converter em filme e passar, vezes sem conta, à frente dos nossos olhos. De novo.
Lembro-me de algo que li de Adriano Moreira, uma das personalidades mais marcantes da nossa história política mais recente, e que cito de memória. Adriano Moreira foi durante uns meses, entre 1961 e 1962, ministro do Ultramar, sendo o autor e impulsionador de um conjunto de medidas corajosas e muito interessantes como o fim do regime do indigenato, a política laboral e a descentralização dos órgãos administrativos e económicos das províncias ultramarinas. Depois da reunião do Plenário do Conselho Ultramarino (realizado em Outubro de 1962) em que se discutiu a Revisão da Lei Orgânica do Ultramar, Salazar, percebendo que as coisas corriam mal, chama-o a Sº Bento e diz-lhe que teriam de mudar de políticas e ideias para o ultramar (falou-se nesse plenário de uma solução federalista para o ultramar), provavelmente fazer algum tipo de cedências para aguentar o regime e ele próprio como Presidente do Conselho. O instinto de sobrevivência de Salazar era muito apurado e ele era francamente pragmático, pelo que confessou a Adriano Moreira a impossibilidade de continuar a linha descentralizadora pois as “iniciativas aberrantes” ameaçavam multiplicar-se. A resposta teria sido algo do tipo: perante essa indicação, o Sr. Presidente do Conselho teria também de mudar de ministro. E assim se demitiu.
Lembro-me ainda do Francisco, o Primeiro-Ministro de Portugal falecido em Camarate, que tinha a vertigem do risco e vivia como pensava, sem pensar como viveria. E que dizia coisas fantásticas como “cabe-nos cada vez mais dinamizar as pessoas para viverem a sua liberdade própria, para executarem o seu trabalho pessoal, para agirem concretamente na abolição das desigualdades. Para isso mais importante que a doutrinação, é levar as pessoas a pensarem, a criticarem e a discernirem”, e ainda que “a política sem risco é uma chatice, mas sem ética é uma vergonha”.
Lembro-me disso porque sem propósito e sem convicções, o resultado é uma espuma de dias sem valor.

(Publicado no Diário As Beiras de 23 de Junho de 2014)


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Publicado em Opinião