O MEU PRIMEIRO DIA DE ESCOLA

Vá, vá muito direitinho, e faça lá visitas à senhora professora. A tiracolo a bolsa em que afundira o Monteverde e a tabuada, eu despedia pátio fora, pós-catrapós. Aquilino Ribeiro, Cinco Reis de Gente.   Não me lembro do primeiro dia em que entrei na minha Escola. Nem sei se fui sozinho, como os outros […]

  • 23:21 | Quinta-feira, 22 de Setembro de 2016
  • Ler em 2 minutos

Vá, vá muito direitinho, e faça lá visitas à senhora professora.

A tiracolo a bolsa em que afundira o Monteverde e a tabuada, eu despedia pátio fora, pós-catrapós.

Aquilino Ribeiro, Cinco Reis de Gente.


 

Não me lembro do primeiro dia em que entrei na minha Escola. Nem sei se fui sozinho, como os outros rapazes. Que nós, aos sete anos eramos reis na nossa terra. Conhecíamos os caminhos todos, a gente, os bichos. O trânsito do Sol e os caminhos da Lua, até a Lua conhecíamos lá por dentro, onde um homem penava carregando um molho de silvas, coitado, só que as estrelas, essas nunca as conseguíamos contar. Que nossos pais nos proibiam também de as contar, que nos poderiam nascer cravos desfeiteando nossas mãos, diziam eles!…

A tiracolo a bolsa de riscado, como aquela que Aquilino levara cinquenta anos atrás. Só que a minha não levava o meu nome bordado. A minha irmã mais velha, a Henriqueta, morreu pequenina, antes de eu nascer. Se não tivesse morrido ela tinha-me bordado, de certeza, o meu nome na sacola.

Na minha Escola tocava de manhã uma sineta. Lembro-me do toque dela. Lembro-me com saudade do toque dela. Como do toque dos sinos, ao Domingo. E até do toque de rezar, pela noitinha, que nos fazia acabar com a brincadeira.

– Bom dia, Senhora Professora!…

Tirávamos a boina espanhola quando a senhora professora chegava.

Sentávamo-nos depois, dois a dois, nas carteiras. Já não sei quem tive por par nesse primeiro dia, não sei se foi o João que agora anda no Brasil, se foi o Zé Maria, que já não está entre nós, se foi a Floripes, a Regina ou a Guiomar.

Da Escola lembro vagamente os primeiros dias, lembro a engenhosa construção das letras com o lápis de pedra sobre a lousa. Lembro-me das tentativas do juntar das letras, já não era o Monteverde, o livro de leitura do tempo de Aquilino, lembro-me da descoberta da leitura e desse vagaroso caminhar pelo texto fora e lembro-me agora que bem mais depressa andavam os ceifeiros no mês de Junho nos campos de meu pai, cortando o eito.

Em Outubro era o tempo das vindimas. Passavam na estrada as mulheres com as cestas. Os carros de bois passavam mais tarde, carregados, a caminho dos lagares. Dentro da Escola o bru-á-á da miudagem, essa cantilena que dizia que esse era um tempo novo a despertar, esse tempo novo como foi o da terra quando as primeiras chuvas desceram sobre ela e as ervagens começaram a crescer.

Pouco importa que não me lembre bem do primeiro dia da Escola. Pouco importa que já não esteja ali, naquele lugar que eu acho sempre vazio quando vou à minha aldeia, o velho edifício pintado de um amarelo antigo, a sineta armada sobre a porta. Que ali, naquele dia, tivera princípio o risco que guiaria meu caminho, que ali, naquele dia se riscava também a sorte de meus outros companheiros.

 

Gosto do artigo
Publicado por
Publicado em Cultura