As telhas de Teivas e outros artefactos (A propósito das “Cavalhadas de Teivas”)

Sempre que entro em Teivas ou passo a deslado olho o casario renovado de um povinho antigo que soube aproveitar as veigas frescas regadas com as boas águas da ribeira, os campos de vinha e oliveiras nas encostas de mediano porte, os pinheirais mais no alto e que ali vive, séculos inteiros passaram, talhado camponês […]

  • 13:47 | Segunda-feira, 12 de Junho de 2017
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Sempre que entro em Teivas ou passo a deslado olho o casario renovado de um povinho antigo que soube aproveitar as veigas frescas regadas com as boas águas da ribeira, os campos de vinha e oliveiras nas encostas de mediano porte, os pinheirais mais no alto e que ali vive, séculos inteiros passaram, talhado camponês como primeiro destino, a que se ligavam os industriosos ofícios que sustentavam também um quotidiano operoso e garantiam a abundância do pão.

Sempre que entro em Teivas ou passo a deslado lembro-me dos mestres e oficiais desse ofício de cuja origem já não há memória – os fazedores da velha telha mourisca – e lembro-os ainda quando passo por essas aldeias fora onde vão desabando os últimos telhados das casas dos lavradores, de alguma capelinha perdida em deserto, que os telhados das igrejas e dos velhos solares que resistem de pé, esses há muito se cobriram com telhas de novos mercados, esvaziados de poesia, porventura, indiciadores de trabalho menos árduo, menos sofrido, o que não é garantia.

Havia argila abundante nas barreiras da Gândara, limites de Rebordinho, quanto bastou para a invenção de um ofício, o fabrico da telha que encontrou mercado bastante numa geografia larga.


Penosa a extracção do barro, demorado o seu transporte, às costas dos homens, à cabeça de mulheres, em carros de bois, a seca sobre um chão aplanado, a intensa acção de amassar no calcadoiro, homens descalços, de enxada em punho, à vezes ajudados pelo pisar de uma junta de bois, o tempo certo do fermentar do barro. sob fresca ramagem, jeito de pão em masseira.

Dias de espera até à vinda dos mestres, o cortador, o podor, a soldadeira.

Talha-se o pelão à porta do calcadoiro, quantidade necessária para um pouco mais de mil telhas e o cortador vai retirando dele a quantidade necessária para cada telha que moldará sobre o delineamento da grade de madeira estendida sobre a firmeza de largo tabuão polvilhado de finíssima terra preta, o poeiro, alisando a superfície com a ajuda do rapino que serve de rasoiro, garantindo-lhe a homogeneidade da superfície.

O podor vem então, segura com a mão a forma de madeira cavada em jeito de berço que garante essa canónica modelação da telha, esse corte em cânula de um volume tronco-cónico, e desprende-a depois, com gesto rápido, nervoso, no chão varrido da eira, alisando-lhe a frontaria, que assim lhe designam os topos, com os dedos.

A cozedura virá depois, nesse forno de grelha aberto nas cercanias da aldeia, arcatura bastante para conter até dez mil telhas cuidadosamente arrumadas em fiadas, os adagues, que se vão sobrepondo, até ao número de cinco, segundo esse sábio fazer dos mestres antigos.

A lenha de pinho, carros dela, arderá depois na fornalha, o fogo sabiamente conduzido até penetrar a espessura dessa caixa aberta à luz e, quando o barro tiver ganho a cor certa, mulheres com cântaros de água ajudarão o arrefecimento e é ainda com as telhas quentes que se retiram que se constrói, lateralmente, a , o montículo das telhas que aguardarão depois a vinda do comprador, o carro de bois que haverá de transportá-las, quando não o transporte da regateira que as distribuirá também por mercado certo.

Foi assim por muitos séculos. Com elas se cobriu em Viseu telhado de Catedral, do Colégio, da Câmara Municipal, o moderno edifício, ao longo da sua lenta construção, o telhado de muitos palácios, de inúmeras igrejas, de habitações de servos e senhores. Agasalho certo do frio ou do calor mesmo enquanto telha vã de modesta morada, guardiãs sempre da intimidade ou dos secretos conciliábulos com a divindade.

Até que, um dia, o mercado se alterou. Deixando a memória. Excelsa memória.

* * *

No rescaldo deste ofício, dois outros ofícios nasceram utilizando a mesma matéria-prima – o dos fabricantes de testos de vasilhame de barro e o dos fabricantes de tijolos para lares de fornos. Modestos ofícios, de fruste tecnologia, de humílima serventia.

Aos fazedores de tijolos bastava a grade de madeira de ajustada dimensão, quadrada de feição, um rapino para alisar e um pequeno forno para a cozedura.

Os fazedores de testos requeriam apenas um tabuão para estenderem a quantidade justa da argila que modelavam com a mão, rasgavam o círculo de dimensão variada com ingénuo compasso de madeira, procediam depois à aposição de uma pega, espécie de bolbo, para manuseio, algumas vezes a modelação de uma tosca asa. E essa graça do desenho aposto com marcador, marca de posse e enfeite simultaneamente, que sempre a gente do povo se preocupou com a beleza, no talhe da horta, no bibe da criança, no vaso de flores.

E tudo se vendia em mercado. A telha aos milheiros, os tijolos aos centos, os testos de panela às dúzias. Tudo se tornava pão. Em Teivas.

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