Aquilino Ribeiro na Bertrand do Chiado

Todo este trabalho de grande fôlego imaginem foi realizado por dois estudiosos aquilinianos aqui presentes, dr. Paulo Neto e dr. Alberto Correia,  a que se  juntaram o Paulo Pinto e a Cristina Morais.

  • 11:42 | Domingo, 17 de Julho de 2016
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Nota do editor:

Este texto integralmente reproduzido, foi a alocução de Aquilino Machado, na apresentação da Revista “Aquilino“, que decorreu na passada 6ª feira, dia 15 de Julho, na Bertrand do Chiado, em Lisboa.

 


Muito boa tarde, minhas senhoras, meus senhores, queridos amigos: agradeço a todos os que se encontram presentes nesta apresentação da “Aquilino”, revista editada sob a chancela da Câmara Municipal de Sernancelhe, e que já vai no seu terceiro número.

Reservo os elogios iniciais para todos aqueles que estiveram envolvidos na sua produção.

Em primeiro lugar, ao elenco da Câmara Municipal de Sernancelhe, presidido pelo Dr. Carlos Silva, e ainda ao director desta revista, Dr. Paulo Neto. Promover uma Revista Literária que pauta a sua linha editorial na investigação e divulgação da obra de Aquilino Ribeiro deveria ser motivo de elogio permanente. Mas fazê-lo com uma incansável dedicação revela-se também num exercício de perseverante cidadania.

O meu avô afirmou um dia que “a minha obra sou eu próprio”. Sempre foi um homem avesso, por sistemática rebeldia, ao enclausuramento das palavras. Era totalmente intransigente com todos os entraves ao pensamento. Sempre se moveu pela liberdade de expressão contribuindo para restituir à profissão de escritor o direito de plena cidadania. Por isso, e como salientei anteriormente, a  divulgação de sua obra revela-se, por si só, num precioso exercício cívico e numa  simbólica resistência contra o esquecimento de uma memória de alguém que olhou sempre em frente, sem medo de errar sendo sempre original.

Em jeito de confissão digo-vos que comecei por conhecer a obra de meu avô Aquilino através de pequenos trechos que a minha avó Gigi amorosamente me lia antes de adormecer. Com ela terei descoberto os países e lugares remotos onde o meu avô aprendeu o valor absoluto da cultura e da sua afirmação como cidadão do mundo. Tudo isto sem sair do bairro de S. Miguel, local onde o escritor beirão viveria o remate final de sua vida, e no qual saudava todos aqueles que o procuraravam ‘de riso lavado e gesto sem rugas como um lavrador do seu quintal’. Este antecedente e belo pedaço de prosa que agora vos li,  foi escrito por Fernando Namora para uma fotobiografia editada pela galeria artis, e que se revelaria no segundo encantamento aquiliniano da minha infância. Este livrinho de capa verde e onde se destacava uma fotografia de Victor Palla, revelar-me-ia o percurso vivencial de meu avô Aquilino e as tais geografias onde tinha morado e que delas recheou com uma escrita, como nos disse Mário de Carvalho no prefácio dedicado à última edição de “A Retirada dos Dez Mil”, ‘onde avulta, sobretudo, o esplendoroso domínio da língua portuguesa, a riqueza vocabular e imagética e também a graça, ora subtil, ora vivaz e bonacheirona, cortando de um travo popular a situação mais tensa ou a solenidade mais erudita’.

Ora, os anos passaram, e sempre me foi ressoando a  ideia de que, mesmo com esta fotobiografia tão estupendamente organizada por Fernando Namora, talvez estivesse na altura de se empreender a uma reinterpretação que perscrutasse o vasto acervo fotográfico da família. E assim foi. Depois de uma aturada pesquisa documental e fotográfica, em que tive a sorte de estar envolvido, e após tudo estar compulsado, foram propostas três sincronias da diacronia vivencial de Aquilino Ribeiro: a primeira de 1885 a 1907, a segunda de 1908 a 1932 e, por fim, a terceira de 1933 a 1963. Acrescentou-se outra que, como nos indica o prefácio do Dr Paulo Neto, conforma simbolicamente um pós-fácio, com algumas imagens do ponto alto da transladação dos restos do escritor para o Panteão Nacional.

Aliou-se a estas sincronias uma bibliografia actualizada recorrendo a imagens da capas ou frontispícios de primeiras edições ou edições raras e que representam um aspecto singularmente inovador para todos aqueles que investigam e amam a obra de Aquilino. Excepção feita para dois raríssimos folhetins, à mão distribuídos, “A Filha dos Jardineiro” e “Os bandidos da Serra da Gardunha” que, infelizmente, não se conseguiu achar o seu rasto. Como escreve Paulo Neto na apresentação desta bibliografia, ‘Aquilino é em simultâneo, pesadelo e prazer de qualquer bibliófilo dedicado’, tais as distintas versões dos mesmos contos e as inúmeras edições especiais dos seus romances, contos, traduções e estudos.

Todo este trabalho de grande fôlego imaginem foi realizado por dois estudiosos aquilinianos aqui presentes, dr. Paulo Neto e dr. Alberto Correia,  a que se  juntaram o Paulo Pinto e a Cristina Morais.

Ora, também fui desafiado a juntar-me a esta bela festa alinhavando algumas modestas letras num dos quatro prefácios que se encontram presentes na fotobiografia. Nele referi que um dos aspectos mais tocantes que nela observo é algo que se identifica com um texto que, certo dia, o meu pai teve a felicidade de nos legar e que nos recorda que, como sucede invariavelmente com todos os velhos  álbuns familiares, há sempre alguns retratos que se desprendem e que acabam por ficar soltos, inexoravelmente condenados a mais tarde ou mais cedo se perderem.  Até neste exercício de indispensável salvaguarda da memória biográfica do escritor beirão foi alcançado um trabalho de grande intensidade emocional, como se quisesse amparar os instantâneos mais representativos das paisagens intemporais que alimentam a doce geografia dos afectos aquilinianos e de assim eles permanecerem para sempre connosco.

Peguemos então em meia dúzia destas fotografias soltas e conversemos um pouco sobre os seus especiosos encantos.

Situemo-nos na primeira sincronia e “retrocedamos “nos limbos do passado até onde a minha memória é como a lanterna dum mineiro perdido num fundo duma galeria”, como escreve no prefácio de “Cinco Reis de Gente, confessar-vos-ei que sempre me impressionou a sequência de três fotografias tiradas num qualquer fotógrafo perdido no tempo,  supostamente de Lamego, e que agora vos destaco,  já que aquela que é devotada ao jovem Aquilino dá-nos a conhecer o rapaz de treze anos, que frequentava o colégio Roseira, com o padre Alfredo na gerência.  Lamego a cidadezinha em que Libório Barradas de a “Via Sinuosa” deitou os olhos para o mundo, cristalizou a duplicidade do olhar entre aquela personagem fictícia e o jovem Aquilino, quase como fosse  assumido o confronto entre o imaginário e as raízes da sua vivência física. A imagem de um rapazinho capaz de enfrentar o mundo, que começou a vencer todas as adversidades de uma vida: o de ter nascido no seio de uma família modesta e ter conseguido saltar as barreiras de um certo determinismo atávico, o que o levou a conhecer outros mundos como poucos o conseguiram no seu tempo.

No entanto, deste acervo inicial confesso que foram as duas fotografias de seus pais sempre me atraíram pela dimensão de sublime rudeza que delas emanava: do meu bisavô, o padre Joaquim Francisco Ribeiro, chegou-me a dimensão de um homem de bem, dotado de algumas letras, por inerência do cargo. Da minha bisavó Mariana do Rosário Gomes, o meu pai sempre afirmou que era um ser humano com uma inteligência e uma capacidade extraordinárias. Escreveu um dia que quando era bem miúdo e de ir para a ladeira e pedir-lhe que contasse uma história, Sem hesitação, teria começado logo a desfiar muitas das narrações que mais tarde o meu viria a redescobrir nos fabulários e nos contos populares de Garrett, Leite de Vasconcelos ou Adolfo Coelho.  Não sabia ler mas tinha uma biblioteca guardada na memória. Mulher do campo, que viveu em Soutosa morreu humilde e serenamente na paz do senhor, a rezar. Ao que consta era de uma inteligência invulgar, mas daquilo que sei dela, da sua força, do seu olhar impenetrável, quase tudo foi construído em torno desta imagem.

Atentemos na segunda sincronia, o tempo dos seus exílios parisienses,  onde Aquilino Ribeiro partilhou a festa da vida e as torrentes da cultura emergente, conheceu e estudou profundamente os escritores, poetas e artistas plásticos, e se assumiu como um “geógrafo urbano” no mais apurado sentido do termo, pela forma como pontuou o ritmo da sua escrita na descoberta de uma cidade inquieta. Tudo tinha começado no dia 3 de Junho de 1908, tendo o jovem Aquilino tomado o Sud-Express dois dias antes: “com a minha valise, o meu monóculo a armar ao janota, tomei o trem de luxo. Em Salamanca entraram um cardeal e um grande de Espanha. Passada a fronteira lá para Bayonne, subiram duas bonitas francesinhas. Ao Diabo a sisudez e o medo da vida!

Na verdade, as fotografias que acompanham o compasso parisiense, rodeiam-no de amigos, e é com eles que cultiva o gosto de deambular nos cenários da cidade, numa inerente vocação de flâneur que o leva construir territórios literários de grande aparato emocional.

Na voz do peripatético Hilário Barrelas dirá, no seu conto Inversão Sentimental, que: “com amor frequentei os cursos magistrais da Sorbona e andei por antiquários e museus em encantada romaria. Aprendi em Paris a arte de brincar com as ideias e a de erguer especiosas arquitecturas sobre princípios que não são mais sólidos que grandes bexigas pintadas” (2013:42). Na biblioteca Sainte-Geneviève passa grande parte do tempo construindo uma paisagem imaginária que seria determinante para o seu percurso literário. No mesmo território bibliotecário cruza-se amiúde com um russo chamado Vladimir Ulianov que os profanos só mais tarde conheceram sob o seu pseudónimo revolucionário de Lénine (Reis, 1988). Mas este espaço de erudição era  também marcado por especiosos encontros: “à noite coalhava-se de leitores. A secção sul era especialmente frequentada por estudantes. As faculdades possuíam livrarias, mas esta era mais internacional e mundana. Reuniam-se ali as mais lindas raparigas das cinco partes do mundo. Quem as apartou para aquela sala ou como acontecia tão especioso fenómeno”.

O salto que agora vos proponho resulta num avanço de algumas décadas inserindo-se na terceira sincronia. Deparo-me com os ternurentos retratos onde se revela o rosto de meu pai junto dos meus avós, quase como guardasse a infância, com aquele sorriso arrebatador estampado no rosto. Um guardador de rebanhos e memórias felizes, este “insaciável curioso devorador de histórias, Ico Barrabico”, como docemente o meu avô o tratava. Na verdade, o meu pai construiu, como qualquer um de nós, uma tessitura de lugares emocionais. Porventura, o seu recolhimento com as boas graças da vida, aquele que mais se identificava era feito na Soutosa, onde passava grandes temporadas ao longo do ano. Na pequena quinta o meu pai destacaria sempre as árvores frondosas que ensombravam o sítio e que foram plantadas pelo meu avô e a forma como as tinha visto crescer e ganhar corpo ao desafio umas com as outras. Toda a passarada das redondezas passou a fazer delas o seu santuário privilegiado: pardais, melros, papa figos. O remate final adolescência de meu pai encontra-se condensado nas duas próximas fotografias tiradas na Soutosa, na segunda metade dos anos quarenta. Nesta fotografia tirada na aldeia de Soutosa, no ano de 1946, sobressai a beleza juvenil do meu Pai. A beleza e a força criativa destes rostos refluem ainda nestas paisagens telúricas com uma intensidade inquebrável.

Ou então, aquela onde o meu avô e o meu pai se encontram sentados no Morris 12 de matrícula AD-36-83, com volante à direita, à boa maneira inglesa. O automóvel que os transportava de encontro à sua geografia sentimental, uma estadia de pelo menos três meses nas terras altas da Beira, que era assim mais do que uma devoção. Constituía uma necessidade inerente ao seu ofício. Confessou o meu pai que o Morris “viria a ser o companheiro e praticamente peça de mobiliário doméstico até à década de 60, cerca de trinta anos de excelentes serviços de mistura com pequenos acidentes, avarias e amuos, numa relação com as pessoas da casa tipo humanizado e temperamental”.

Para finalizar o último registo fotográfico reflecte a percepção do fim da vida, dos últimos dias que se aproximavam, tão tacitamente evidente na frase de rara beleza que dedicou à minha irmã mais velha, no “livro de Marianinha”: “tenho esperança, Marianinha, que algum dia, já eu longe do mundo, as leias e te façam sorrir” para mais à frente dizer  que “no ocaso como estou, consolo-me a ideia que nesse sorriso perpasse a vibração que se vai diluindo e afundindo no golfo do tempo com as estrelinhas que abrem e fecham a pálpebra sonolenta na praia areada de uma noite de verão”.

Destas enternecedoras fotografias retiradas de vários álbuns familiares e tão compaginadas nesta fotobiografia perpassa sempre um ramalhete de recordações que nos tocam emocionalmente. Aquilino disse no livro de estudos, “Por Obra e Graça”, que viveu “sem medo de passar por utopista, de construir nas nuvens, de arquitectar repúblicas imaginárias”. Um utopista e a sua permanente cercania emocional encenada nas Terras do Demo. “Eu sou um artista rude”, escreveu. “Filho da minha serra. Nasce-se com o berço às costas. A Beira Alta não tem símile no mundo Em poucas dezenas de quilómetros reproduz-se a terra toda: amenidade e avareza, a colina e o vale, a civilização e a selvajaria”.
Mas teve o ensejo de construir outras paisagens literárias, todas elas admiráveis e luminosamente belas. Registo Aquilino que “Cada homem é um mundo. Por isso mesmo, cada homem que se sabe contar é um livro nunca igual a outro livro”. Um livro desta dimensão tem de estar sempre aberto para ser lido por todos, porque Aquilino nasceu para nunca mais morrer. E este número da revista “Aquilino” é um completo e intenso elogio que aclama esta afirmação.

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