"A escolha de ser livre"

O Pedro Santos Guerreiro escreveu o artigo abaixo noExpresso deste fim-de-semana. É um texto impressionante, que mostra bem que a sua demissão do jornal nada tem a ver com o incidente com Vítor Matos. Nem poderia, são dois jornalistas fantásticos. O que PSG diz é somente uma manifestação do que está a acontecer neste país […]

  • 11:08 | Domingo, 24 de Março de 2019
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O Pedro Santos Guerreiro escreveu o artigo abaixo noExpresso deste fim-de-semana. É um texto impressionante, que mostra bem que a sua demissão do jornal nada tem a ver com o incidente com Vítor Matos. Nem poderia, são dois jornalistas fantásticos.
O que PSG diz é somente uma manifestação do que está a acontecer neste país há já muito tempo. Aqueles que decidiram ser livres e decidiram falar e fazer perguntas (abdicando das mordomias que o silêncio propicia), sofrem isolados as consequências dessa escolha (como se houvesse outra) perante a impassividade dos outros. Essa impassividade é que nos está a matar, como sociedade, e a desencorajar outros a decidirem ser livres. Querem uma melhor definição de totalitarismo?
É essa: uma sociedade de pessoas que decidem que não podem ser livres.
A mediocridade que vemos em todo o lado é só uma consequência de tudo isto. Triste que seja uma escolha.

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“A escolha de ser livre

Entre Polónios e Cláudios, o príncipe Hamlet entrou consciente na ratoeira final porque não já não queria ser rei.
Ouça, estou a falar consigo. Todos temos poder. O poder coletivo de pressionar escolhas, como sociedade informada e ativa. O poder individual de fazer escolhas, como pessoas esclarecidas que tomam opções sobre os outros e sobretudo sobre si próprias. É mais fácil concordar do que discordar, é mais fácil dizer sim do que dizer não, quase sempre a opção certa é a da dificuldade.
Portugal vive em stress pós-traumático, depois da bancarrota de 2011/2014, depois dos bancos rotos de 2014/2019, e andamos de lança-chamas a perseguir fantasmas, a sublinhar a amarelo nomes nas listas de caídos e enquanto isso os sobrevivos reorganizam-se. O legado de ruína tanto serve para espiar os que fizeram mal como para expiar os que se autopreservaram. Podemos passar o resto da vida a pontapear os Varas, Limas e Salgados, os BES, PT e Caixas, os Sócrates e os Pinhos, mas enquanto a justiça trata dos suspeitos, acusados e condenados pelo passado podemos também abrir os olhos para o presente de uma dívida pública disparada, de impostos desenfreados, de uma economia melhorada mas frágil porque dependente, de uma sociedade desigual e de um sistema político que se reordena na captura do poder, na distribuição de intendências e na destruição de independências. A descredibilização dos Conselhos de Finanças Públicas, o tiro o alvo contra os Bancos de Portugal, o esvaziamento das Cresaps, as “pós-verdades” desatadas contra os jornais e as eloquências para subornar plateias são o jogo do poder contra quem o põe em causa.
Mas há síndrome pior: o da relativização moral, o da recriação do contexto bom para o texto mau, a aposição da verosimilhança sobre a verdade, a dança da história e da contra-história que nos engole para um vórtice de infinitudes. Num ano de eleições, é o próximo poder que está a fabricar-se. E a entrega do poder em mãos eleitas está antes nas mãos de quem elege – está nas suas mãos. Lembre o passado, escreva o futuro. Quem olha pelo espelho julga os objetos mais afastados do que realmente estão, mas quem olha para a frente precisa deslindar os efeitos da lenda da Fada Morgana, que dava aos objetos distantes a aparência de coisas maiores.
Essa é a opção coletiva de uma sociedade. Mas a escolha primordial para que o país não caia aos bocados começa por nós próprios, pelas nossas funções e pelas nossas opções. Sim, ouça, estou a falar consigo, depois de cada reta há a vírgula de uma curva e é nessa comissura que nos definimos a nós próprios. Se nos resignamos ou fazemos uma escolha. E se essa escolha é feita pelos valores certos e não pelo agachamento. Preferir o dever cumprido ao dever comprado. Usar o poder da autodeterminação. Escolher a integridade, a independência, o poder de fazer e o poder de abdicar, manter a inocência depois da virgindade, escolher ser livre. Decidir mesmo entre o preto e branco, e não usar a “paleta dos cinzentos” que, como escreve João Luís Barreto Guimarães, “poderia aprimorar a arte da sobrevivência”. Porque mesmo o preto e o branco não são pretos e brancos, o artista plástico Anish Kapoor patenteou o seu próprio preto e Melville precisou de um capítulo inteiro para definir o branco da baleia. De que cor são as suas escolhas? Sim, na sua vida, entre a audácia de uma intenção e a fenda do erro, que consequências assume para si que reivindicaria a outros, que opções contrárias à manada e à debandada toma, de que cor são as suas escolhas?
As minhas são vermelhas, vermelhas de vermelho vermelho, porque escolho a exuberância do “poema ilimitado” que a vida é, à praia mineral das bolhas de mercúrio, esse líquido que não molha, matéria que o dedo não fura. Mas agora estou de novo a falar consigo, porque a escolha por uma sociedade melhor começa pelo que sente e pelo que consente, pelo seu livre arbítrio, pela consequência dos seus próprios valores. No Grande Inquisidor de Dostoievsky, o velho sob julgamento não diz uma só palavra, enquanto o cardeal acusa Jesus de ter semeado o caos com a proposta de liberdade que deu aos homens, defendendo que eles precisam do sossego da servidão. Até ao fim, nem uma só palavra do julgado, que se despede com um beijo. E sai livre.
Sejamos pois livres, informados entusiastas da vida, testemos a embaixada da sorte, escolhamos a intrepidez da escolha certa e determinemo-nos, porque somos nós os escritores das nossas vidas e os leitores de uma sociedade aberta e democrática, “muito além do azul onde oxidados morrem”, como escreveu Cesariny quando nos chamou a Elsinore, porque “entre nós e as palavras, os emparedados / e entre nós e as palavras, o nosso dever falar”, e porque, escreveu Ruy Belo, “ninguém, no futuro, nos perdoará não termos sabido ver”.
Vejamos, pois, e cumpramos o nosso dever falar. O nosso dever escolher. E escolher ser livre, na liberdade de querer tudo e de nada querer, na esperança contínua de que no fim os bons ganham sempre, na prática quotidiana de nos informarmos, pensarmos, termos opinião própria, evadirmo-nos da manipulação e acolhermos em alegria a vida do lado certo, do lado do bem, do lado da justiça. Na peça dentro da peça, Hamlet não prepara a sua tragédia, escolhe ser livre e vive a apoteose. Ouça, estou a falar consigo, vou continuar a falar consigo.”


 

Norberto Pires

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