Em resposta a um email de Domingo

    Recebi hoje pela quase aurora um email dalguém que há muito admiro pelo impoluto percurso de vida, pela obra feita nos lugares que ocupou com mérito e merecimento, pelo seu saber, humanismo e livros publicados. Ele me perdoará, pois é tolerante e eu mantenho-lhe o anonimato, por imperativo de honra e discrição. Acaba […]

  • 13:24 | Domingo, 10 de Maio de 2015
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Recebi hoje pela quase aurora um email dalguém que há muito admiro pelo impoluto percurso de vida, pela obra feita nos lugares que ocupou com mérito e merecimento, pelo seu saber, humanismo e livros publicados.
Ele me perdoará, pois é tolerante e eu mantenho-lhe o anonimato, por imperativo de honra e discrição. Acaba assim:
Mas como o Fernando Dacosta escreveu há dias no Jornal Negócios, “Quem diz o que pensa está lixado”.
Até o Papa Francisco.
Só que ele, como o meu amigo, não tem medo.
Cumprem-se.”
 
Este elogio, num mundo parco deles, onde a “louvação” é comprada, senão auto-panegírico outorgado a troco de uma reciprocidade promocional e foro  ganho de mera lambujice subserviente, foi benvindo nesta manhã soalheira de domingo, “dies dominica” em que tantos milhares de peregrinos portugueses rumam a Fátima, num esforço que muito respeito, pago por sua Fé e em que eu – menos crente nesta minha agnose inquieta – me repouso laboriosamente das andarilhanças da véspera.
Recomendo-as a todos, porque não são no cabo do mundo, nem um desencorajamento pecuniário. Ir à Régua, A 24 acima, deserta por mor das malfadadas portagens, olhar deleitado o majestoso e dolente Douro – temível em dias de tumultuosas cheias – passear marginal afora, ver os barcos que chegam do Porto e por ali repousam o tempo de uma refeição ou de uma visita antes de rumarem ao Pinhão, Pocinho, Barca d’Alva, a trazerem centenas de turistas curiosos que animam a cidade, de câmara em punho e sapatilhas nos pés, muitos estrangeiros, muitos bons lusitanos de portuense cepa.
Visitar a Biblioteca Municipal, na Rua da Ferreirinha, Dona Antónia Adelaide Ferreira personagem notável e imortalizada por outra grande Senhora, de Vila Meã, Amarante, em “Vale Abraão”. Encontrar um estupendo palacete recuperado com bom-gosto, recepção afável e um bibliotecário hospitaleiro e culto. Passear pelo acervo de Araújo Correia com tanto Aquilino perfilado nas suas lombadas bem encadernadas de quem ama os livros, folheá-los na Sala Agustina Bessa-Luís, com o Douro cheio de rabelos aos pés.
Sair enfim à calidez da tarde e embarcar no “Milénio”, do Cais da Régua até ao Pinhão, passar na Barragem de Bagaúste e sua eclusa com desnível de 27 metros, merendar a bordo, desembarcar no Pinhão morno, no tempo simpaticamente parado e descer num agradável comboio da CP, pela Linha do Douro, até à origem.
Um dia diferente e aqui tão à mão de semear… E tudo incluído, caro leitor, se não comprar “recuerdos” e guloseimas às doceiras, nem chapéus de palha aos ciganos, gasta 50 € e dá-os por muito bem empregues.
O nosso Portugal tem tanta maravilha… Claro está que não falo nos políticos de meio-tremoço nem na sua corte de bufões atarantados. E já agora, uma sugestão: Leia “O Bobo”, de Alexandre Herculano, leia “Os Contos Durienses” de João Araújo Correia, “Vale Abraão”, de Agustina ou Miguel Torga, que aqui deixo num excerto do “Diário XII”:
 
“O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso da natureza. Socalcos que são passadas de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor, pintor ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis da visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a reflectir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta.” 
 
E volto ao meu Amigo e seu mail: nestas cruzadas de Deus e do Demo com que a vida tece suas vias, ora de cruz ora de regaleira, ocorreu-me um conselho dado pelo pai de Aquilino – Joaquim Francisco Ribeiro – a seu filho:
Tem coragem. Nunca desconfies de ti. O mundo não é outra coisa senão vontade.”
Que e provavelmente terá dado origem ao seu ex-libris de uma vida: “Alcança quem não cansa”.
E mal me ficaria não deixar de meu Mestre duas linhas:
“A esta altura as cerejas, só elas, enfeitam a serra triste e feia. Mas há outras coisas engraçadas para que ninguém olha, tão interessantes como uma écloga de Crisfal: o cebolinho a crescer, cada dia os punhais javaneses de suas tiges a empolarem e altear-se; a erva-molarinha a aveludar o lenteiro, e os estendais de macela, malmequeres e boninas, em certos prados, a alcatifar o solo com sua lençaria indiana.
 A perdiz já não cucuritava na crista dos muros. Passava escoteira com os perdigotinhos, ágeis como argalhos levados na regaçada do vento, a mãe à frente naquela sua marcha tão fluida que não se se alcança ver-lhe o passo, o pai perdigão, cobrindo a rectaguarda, pronto com uma manobra diversiva a distrair o inimigo, podengo, ave de rapina, o homem. O Argos dava-lhes uma corrida, eu berrava-lhe, e ele suspendia-se como um bronze, contrafeito mas advertido em seu instinto de bicho bem-educado que sabia que não tinha licença. Os melros cantavam, recantavam para que a fêmea se não cansasse no gineceu enquanto boiavam por cima dela, a desafiarem-na debalde para a bela gandaia, as nuvens, o vento, outros pássaros, e a rola e o cuco desferiam na coruta dos pinheiros um bolero à Ravel. E as águas, empurrando-se na ribeira, saltando dos cômaros, fusgando na rega, ou, soltas da represa que se tapou à noite, taramelando calçada abaixo, rasgavam, como relâmpagos de brancura contra a claridade baça do céu de trovoada, clareiras à morrinha eu que ia correndo a lide rural.”
In “Um Escritor Confessa-se”, (pp.189/190).
O resto, querido amigo, perante estes exemplos eternos, aqui me quedando desta longa epístola, é a efémera idiotia pululante e impada da solidez sem dúvidas do seu ancho vazio. Sorriamos, porque o riso nem no-lo merecem…

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