"A política ama a traição mas abomina o traidor"

“A política ama a traição mas abomina o traidor” Leonel Brizola, ex-governador e líder trabalhista.     É sempre muito interessante percebermos as flutuações de alguns políticos na maré cheia e na maré baixa. Mas mais admirável é ainda constatar o jogo de cintura que muitos deles possuem, decerto ganho em muitas horas a dançar […]

  • 10:30 | Quarta-feira, 31 de Maio de 2017
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“A política ama a traição mas abomina o traidor”
Leonel Brizola, ex-governador e líder trabalhista.
 
 
É sempre muito interessante percebermos as flutuações de alguns políticos na maré cheia e na maré baixa. Mas mais admirável é ainda constatar o jogo de cintura que muitos deles possuem, decerto ganho em muitas horas a dançar o twist. Também é fenomenologicamente catita, perceber que nas mãos, extremidades dos braços com que abraçam, ora trazem calorosas palmadas, ora afiados punhais.
Judas Iscariote moveu-se a troco de 30 dinheiros em prata. Depois, num arroubo de consciência, pendurou-se numa corda. Antes disso, Júlio César, no ano de 44 a.C., quando entrava no Senado, foi 23 vezes apunhalado por conspiradores entre os quais se encontrava seu filho Brutus. “Tu quoque, Brutus, fili mi!”, terão sido suas derradeiras palavras. Mas já não lhe serviram de nada…
Actualmente, os eventos de apresentação dos candidatos autárquicos, a seu jeitinho e modo, são um pouco o palco desse contorcionismo de oportunidade e circunstância.
É normal, banal, corriqueiro, ver o “traidor” de ontem gabar muito o traído de hoje. O despudor, por vezes, até os leva aos pares, para reiterarem substantivamente a adesão de hoje ao repudiado de ontem.
Talvez tenham estômago de cavalo, dado às persistentes ruminações mas muito frágil, na parte intestinal, quanto às cólicas que se autopropiciam.
Provavelmente Eça de Queirós teria toda a razão, quando há mais de um século escrevia no “Distrito de Évora”:
O Que Verdadeiramente Mata Portugal
O que verdadeiramente nos mata, o que torna esta conjuntura inquietadora, cheia de angústia, estrelada de luzes negras, quase lutuosa, é a desconfiança. O povo, simples e bom, não confia nos homens que hoje tão espectaculosamente estão meneando a púrpura de ministros; os ministros não confiam no parlamento, apesar de o trazerem amaciado, acalentado com todas as doces cantigas de empregos, rendosas conezias, pingues sinecuras; os eleitores não confiam nos seus mandatários, porque lhes bradam em vão: «Sede honrados», e vêem-nos apesar disso adormecidos no seio ministerial; os homens da oposição não confiam uns nos outros e vão para o ataque, deitando uns aos outros, combatentes amigos, um turvo olhar de ameaça. Esta desconfiança perpétua leva à confusão e à indiferença. O estado de expectativa e de demora cansa os espíritos. Não se pressentem soluções nem resultados definitivos: grandes torneios de palavras, discussões aparatosas e sonoras; o país, vendo os mesmos homens pisarem o solo político, os mesmos ameaços de fisco, a mesma gradativa decadência. A política, sem actos, sem factos, sem resultados, é estéril e adormecedora.
Quando numa crise se protraem as discussões, as análises reflectidas, as lentas cogitações, o povo não tem garantias de melhoramento nem o país esperanças de salvação. Nós não somos impacientes. Sabemos que o nosso estado financeiro não se resolve em bem da pátria no espaço de quarenta horas. Sabemos que um deficit arreigado, inoculado, que é um vício nacional, que foi criado em muitos anos, só em muitos anos será destruído.
O que nos magoa é ver que só há energia e actividade para aqueles actos que nos vão empobrecer e aniquilar; que só há repouso, moleza, sono beatífico, para aquelas medidas fecundas que podiam vir adoçar a aspereza do caminho.
Trata-se de votar impostos? Todo o mundo se agita, os governos preparam relatórios longos, eruditos e de aprimorada forma; os seus áulicos afiam a lâmina reluzente da sua argumentação para cortar os obstáculos eriçados: as maiorias dispõem-se em concílios para jurar a uniformidade servil do voto. Trata-se dum projecto de reforma económica, duma despesa a eliminar, dum bom melhoramento a consolidar? Começam as discussões, crescendo em sonoridade e em lentidão, começam as argumentações arrastadas, frouxas, que se estendem por meses, que se prendem a todo o incidente e a toda a sorte de explicação frívola, e duram assim uma eternidade ministerial, imensas e diáfanas.
O país, que tem visto mil vezes a repetição desta dolorosa comédia, está cansado: o poder anda num certo grupo de homens privilegiados, que investiram aquele sacerdócio e que a ninguém mais cedem as insígnias e o segredo dos oráculos. Repetimos as palavras que há pouco Ricasoli dizia no parlamento italiano: «A pátria está fatigada de discussões estéreis, da fraqueza dos governos, da perpétua mudança de pessoas e de programas novos.»
Nicolau Maquiavel em 1514 escreveu este princípio, que ainda hoje faz muita escola: “Os fins justificam os meios”, ciente de que na política uma verdade de hoje pode ser uma mentira de amanhã e vice-versa, assim como, de um dia para o outro, essa verdade ou um gesto, se pode tornar absolutamente demodado ou até obsoleto. As atitudes contraditórios ou incoerentes, nomeadamente em “políticas e políticos de proximidade e coesão” são, no fundo, um eufemismo de traição proficiente, pérfida e vil, praticada e logo a seguir, entre espáduas bem cerradas, numa fraternidade linda de ver, “adredemente obnubilada”, como escreveria o rotundo anedótico, quase Dâmaso Salcede de Azurara…
O outro também dizia quando lhe perguntavam porque não “ia para a política”: “tenho todas as qualidades, mas faltam-me os defeitos.” A versão actual e que colhe efeito é: “Já lá estou, pois tenho todos os defeitos, só me faltam as qualidades, mas essas, nos tempos que correm, não contam para nada…”
“É a hora!” (citando Pessoa), mas de embainhar adagas, mesmo se ainda com o rubro sangue pingando e calçar as luvas de pelica, de preferência brancas, como as de qualquer mordomo do poder.

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