SOUTOSA II – UM MÁGICO LUGAR DE ESCRITA

  Quando me instalo na aldeia – e nunca será para menos do que os três meses de verão – hei-de levantar-me infalivelmente com a alba (…) À noite, depois das Trindades, quase ao morrer do dia, quebro por instantes a quietude irreal de meu gabinete de trabalho. Um Cristo olha-me da parede, não sei […]

  • 17:59 | Segunda-feira, 09 de Novembro de 2015
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Quando me instalo na aldeia – e nunca será para menos do que os três meses de verão – hei-de levantar-me infalivelmente com a alba (…)

À noite, depois das Trindades, quase ao morrer do dia, quebro por instantes a quietude irreal de meu gabinete de trabalho. Um Cristo olha-me da parede, não sei se com olhos compassivos se dolentes, envoltos em órbitas maceradas.


Aquilino Ribeiro, Geografia Sentimental.

 

Em Soutosa somam-se os lugares onde a presença de Aquilino se estende como vincada sombra de meio-dia, o aro de uma geografia agreste onde penaram seus irmãos de sina, camponeses e pastores, meias-fidalgas com eles quase irmanados e até abades de magras côngruas, o torcicolo das ruas para onde se abria o balcão esconso do casario, a porta baixa das tabernas onde minguavam fregueses e o mais elaborado portal da capelinha que se abria para a missa da manhã, o chão das eiras, em Setembro, com o milho seco tilintando sobre as mantas estendidas na eira, o alvoroço da tílias batidas por ventania ou o sussurro das abelhas colhendo o último pólen antes da cresta.

Lugares de afectos, todos, mais intenso esse, o do recato familiar, a esposa, filhos, uma neta que por ali passeou ao colo e os amigos que entravam portal adentro, toalha de linho tantas vezes estendida sobre a mesa e a conversa estendida pela modorra da tarde até que fosse a hora do regresso de quem viera, que as estradas eram ainda demoradas.

Lugar de escrita, a Soutosa, a monástica simplicidade de um “escritório” de onde era vizinho um Cristo de corpo macerado, uma luz coada através da janela que deixava ver o recorte do tronco das tílias que um homem já não abraçava, o deslize da pena, suor, sangue, mágoas, flores, desnudada a alma da terra e a dos homens que a habitam, uma cósmica visão vislumbrada desse minúsculo ponto que os mapas esqueciam de plantar e onde ele fincou lança de guerreiro ao jeito da mágica lâmina de Excalibur.

Urgente se torna vivificar essa geografia que envolve esse ônfalos matricial, sinalizar caminhos que guiem até esse lugar de afectos, espalhar aos ventos as páginas dos livros que nos contam desse tempo virgem do desabrochar da Terra, da história dos Homens mal saídos da tarde do Sexto Dia.

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