A vida na rua e as redes sociais virtuais. Que complementaridades?

O topónimo “rua direita” aparece com bastante prodigalidade no sistema urbano português e configura na sua natureza conceptual uma ideia de direcção, articulação e atravessamento. Em suma, uma rua directa, de “ponta a ponta, de cima a baixo”, estruturante nas suas valências urbanas.

  • 3:40 | Quinta-feira, 28 de Novembro de 2013
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A vida  na rua e as redes sociais virtuais. Que complementaridades?

“Daqui derivaram, já no sopé do monte, as interessantes ruas do velho Viseu, mais  ou menos sinuosas, Rua das Bocas, Rua do Soar de Baixo, Rua Direita, essa por sinal torta como linha num bolso. Porque era a axial, que ia ao direito, de ponta a ponta, de cima a baixo, assim lhe chamavam e justamente”(Aquilino Ribeiro, “Arcas Encoiradas”) .

O topónimo “rua direita” aparece com bastante prodigalidade no sistema urbano português e configura na sua natureza conceptual uma ideia de direcção, articulação e atravessamento. Em suma, uma rua directa, de “ponta a ponta, de cima a baixo”, estruturante nas suas valências urbanas.


Esta ideia parece um bom princípio de conversa,  sim conversa, que é isto que devemos fazer quando baterem a este ferrolho, e remete-nos para a alargada utilização do conceito «espaço público», já que a nossa “rua direita” se integra numa visão cultural que acompanha o crescimento da cidade contemporânea, reflectindo a convergência de diversas apropriações que levam à construção de uma identidade territorial colectiva.

De facto, um aspecto fortemente valorizado nos contextos territoriais urbanos, e que tentaremos detalhar neste pequeno texto, reporta-se à importância que o espaço público assume na transmissão de alguns compromissos que estimulam  a emergência de um meio criativo. Neste aspecto como sintetiza Jordi Borja ao citar Habermas, “a cidade reflecte-se no espaço público, onde o simbolismo colectivo se materializa” (2003).

Na perspectiva defendida pela geógrafa Cynthian Ghorra Gobin ressalta também uma ideia central: a definição de espaço público que ultrapassa a materialidade física da cidade e que “autoriza o encontro anónimo de indivíduos de classes sociais, de raças, de etnias e religiões diferentes, mas também a dimensão da imaterialidade através das representações que eles suscitam e o valor simbólico que eles veiculam” (2001).

Raciocínio correlativo é sustentado pelo sociólogo Michel Bassand quando afirma que o conceito de espaço público conforma duas significações: uma primeira, imaterial motivada pelo “confronto de ideias, de valores, de proposições das políticas”; uma segunda, sobreleva a sua actuação na materialidade do espaço público ao definir-se como um “território que se situa numa colectividade urbana” , por exemplo, uma praça, uma rua, etc” (2001).

Esta vocação vivencial da cidade assume-se como uma ideia muito aliciante no sentido de construir uma visão criativa, consolidada através de um «urbanismo quotidiano», fruto duma “acção pública ao nível do esboçar dos projectos de cidade e a necessária acção concertada entre actores para que os projetos de cidade sejam projetos de cidadão“ (Isabel Guerra, 2003).

Tal dinâmica emerge sobretudo nas sociedades urbanas, onde se afirma uma consciência redistributiva no «governo urbano» (com particular realce para certos cenários da Europa Setentrional) surge, paralelamente, entre os actores públicos, um crescente acolhimento da descentralização e da contratualização, como a melhor via para resolver os problemas da gestão territorial. As soluções assim obtidas produzem interacções bastante positivas entre as várias instituições do Estado e os novos actores sociais, conduzindo a práticas de governação mais plural.

A extensão destes princípios de defesa do espaço público encontra sobretudo acolhimento nas redes sociais virtuais. Se numa primeira apreciação se recear que daqui possa resultar, pela prevalência dos interesses locais invocados, um enfraquecimento da dimensão do espaço público urbano e da sua concomitante função de sociabilidade, comprova-se, mediante análise mais abrangente, que, para lá do capita social já existente, o alcance dos projectos realizados numa perspectiva de maior intertextualidade transcendem os circunstancialismos locais e abrem «pontes» para o exterior da comunidade.

Ou seja, cada vez mais estes sistemas virtuais surgem como complementos das esferas espacializadas de sociabilidade, valorizando “as redes sociais e a normas de reciprocidade a elas associadas” (Putnam, 2001), e com alguma profusão assiste-se ao desenvolvimento de projectos de internet que procuram responder a determinadas necessidades das comunidades urbanas.

 

Redes estas que propendem a reforçar o sentido cívico dos cidadãos nas comunidades locais apresentando-se como uma manifestação activa do exercício da cidadania, a que Verba (1992), citado por Alfredo Mela, define como “citizenry (vocábulo que sugere a ideia de uma cidadania «em acção»), para distinguir do termo mais habitual de citizenship, que designa a relação jurídica entre o cidadão e o Estado” (Alfredo Mela, 1999).

 

São, portanto, a partir destes projectos inovadores, que através da reciprocidade e cooperação das redes conseguem reforçar a identificação dos cidadãos com o respectivo território físico, quer se trate de residentes quer de simples utentes. Mas o que sobressai particularmente deste tipo de plataformas cívicas é a sua capacidade para gerar diversas redes sociais de cooperação e de confiança, promotoras de stocks de capital social que enriquecem a tolerância a diversidade, e a participação cívica. Estas acções tomam sobretudo relevância no trabalho dirigido às comunidades mais desfavorecidas, cujo meio criativo, graças ao capital que as redes lhes induzem, experimenta um acentuado acréscimo de coesão e de sustentabilidade social.

Estas tendências assentam numa perspectiva optimista (de renovação/inovação), ligada à implementação de modelos de participação cívica que estão naturalmente associados às novas capacidades de mobilidade, e da recuperação do espaço público, como factor simbólico do cenário citadino e como elemento determinante da vida social, de afirmação da cidade e de cidadania.

Ora, aqui poderá radicar a riqueza deste novo portal de informação: a acepção de uma esfera pública imaterial que contribua para a dilatação da vida na rua, e que possa fortalecer uma dinâmica de desenvolvimento local. Fazendo uso de uma ideia do geógrafo João Ferrão, é como notássemos que os princípios «da democracia deliberativa, como fonte de decisão e de acção» são utilizados através de uma rede desterritorializada como “fonte de comunidade renovada”. Onde a multiplicação de plataformas cívicas contribui para a dilatação do espaço público, fortalecendo uma dinâmica de desenvolvimento local com uma dimensão de grande intensidade simbólica e notória capacidade criativa, induzindo nos cidadãos um novo sentimento de ligação ao território físico, nomeadamente no que concerne a defesa do seu direito à respectiva governação.

Observava, em 1953, o meu avô Aquilino:

“Por esse País fora há cidades que morrem, com há cidades que renascem e se põem a viver a vida do nosso tempo. Porque vivem umas? Porque morrem outras? Muitas vezes não se sabe ao certo! …Umas deixam fugir os seus homens mais representativos, cristalizam entre os potes e o gamão das boticas, e as suas pedras cobrem-se de musgo e caem.

São cidades que vegetam, cidades cheias de enfado, para as quais matar o tempo é tão custoso e difícil como pescar pérolas no fundo do mar.

Outras não: recebem gazetas de Paris, mercadorias de Londres a visita a boa Companhia teatral sempre que vai levar à província o mimo da sua arte. Vêem caras estranhas nas suas ruas e não espantam. As mulheres trajam pelo último figurino e os homens martelam o passo quando giram aos negócios” (…)

Viseu é das cidades que têm em si um gérmen de progresso, digno de melhor sorte (…). “Dentro dos muros há uma impressão viva de bulício ao contacto das pequenas actividades quotidianas, e certo ar e desenfado ressalta tanto das ruas movimentadas, oficinas e casas de comércio dos habitantes” (Arcas Encoiradas).

Continuemos, pois então, passados sessenta e um anos, a saber reforçar estes valores identitários da cidade de Viseu. Construindo e apropriando esta nossa Rua Direita.

 

Aquilino Machado. Novembro de 2013

Referencias Bibliográficas

BORJA, Jordi (2003): “El espacio público: ciudad y ciudadania”. Barcelona:

Diputació d Barcelona.

CASTELLS, Manuel (2004):Galáxia Internet. Reflexões sobre Internet, Negócios e Sociedade”. Fundação Calouste Gulbenkian

GOBYN, Cynthia Ghorra (2001): “Les espaces publics, capital social”; in “Geocarrefour, Vol 76

FERRÂO, João (2005): “A Cidade como Agitação Social. Pedido de ajuda de um geógrafo aos colegas das ciências sociais

GUERRA, Isabel (2003): “Tensões do Urbanismo Quotidiano”; in Políticas Urbanas tendências, Estratégias e Oportunidades, Org. Portas, N. et.all, Fundação Calouste Gulbenkian

MELA, Alfredo (1999): “A sociologia das cidades; Editorial Estampa

PUTNAM, Robert (2002): Democracies in Flux: The Evolution of Social Capital in Contemporary Society, Oxford University Press,

RIBEIRO, Aquilino (2012): “Arcas Encoiradas”. Bertrand Editora

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